Contra o Dever Universal (Kant): Ética como Resposta Situada e Não Formalismo
Superação da conceção da ética como sistema fechado de normas
Abstract
Este ensaio propõe uma crítica ontológica à ética formalista, tomando o imperativo categórico kantiano como paradigma da surdez normativa diante da instabilidade do real. Contra a conceção da ética como sistema fechado de normas universais, defende-se uma ética situada, relacional e operativa, fundada na capacidade de reorganização simbólica diante da alteridade. A partir da Ontologia da Complexidade Emergente, argumenta-se que o gesto ético não se deduz de princípios prévios, mas emerge como resposta concreta a situações de risco, assimetria e colapso. O texto dialoga com autores como Levinas, Derrida, Agamben, Stengers, Haraway e Butler, recusando tanto o universalismo dedutivo quanto o relativismo arbitrário. Em vez de uma moralidade centrada no sujeito racional, propõe-se uma ética do entre — onde a dignidade é efeito relacional e a responsabilidade coincide com a capacidade de sustentar coexistência sem absorver a diferença. A crítica ao formalismo kantiano não é apenas metodológica, mas estrutural: revela que a universalização abstrata exclui precisamente aquilo que convoca o cuidado. Neste horizonte, o valor não precede a relação — nasce dela.
O dever universal é surdo; a ética começa na escuta da instabilidade. Kant converteu a exigência moral em forma e a forma em regra de universalização; o que aqui se propõe é o inverso: a ética não se deduz, responde. Onde há contexto, diferença e risco de colapso, a decisão não cabe numa matriz abstrata, porque o justo não acontece na igualdade do caso, mas na especificidade do encontro. A superação da ética como sistema fechado de normas deriva desta constatação: toda aplicação indiferente à singularidade transforma o outro em variável e a responsabilidade em técnica. A tradição ocidental consolidou a expectativa de que o valor reside na conformidade com preceitos prévios — do imperativo categórico à eudaimonia teleológica, do utilitarismo do cálculo à pedagogia comunitária da pertença —, mas esse caminho supõe estabilidade do real. Não a há. A matéria organiza-se nas bordas da turbulência; o sentido inaugura-se no acontecimento. Uma lei universal, por definição, não ouve o acidente.
Dizer que a ética emerge da instabilidade não é um gesto metodológico, é uma tomada de posição ontológica. O mundo não oferece um chão estável sobre o qual erguer princípios definitivos; oferece campos de relação que se compõem e decompõem, plasticidades materiais que se reconfiguram quando atravessadas por alteridades concretas. A responsabilidade, nesta chave, não antecede a situação como forma vazia à espera de conteúdo: ela é uma operação simbólica que reorganiza o tecido relacional para sustentar a coexistência. Uma norma rígida promete segurança, mas frequentemente fecha a escuta. Onde o dever é um a priori, a diferença é ruído; onde a ética é resposta situada, a diferença torna-se critério.
Há convergências parciais com tradições que já desconfiaram do universalismo dedutivo. Em Levinas, a exposição ao rosto fere a suficiência da regra; em Derrida, a decisão justa acontece para além do cálculo; em Agamben, a exceção mostra a violência latente do dispositivo normativo. Ainda assim, a alternativa aqui avançada não apela a um fora transcendental nem a um suplemento de interioridade. O que funda o ético é um excesso operativo imanente — a capacidade de um sistema, humano ou não, de se reorganizar diante da alteridade que ameaça o seu equilíbrio funcional. Por isso Stengers recusa garantias e fala de obrigações que nos prendem sem promessa; por isso Haraway insiste em “ficar com o problema” e coabitar sem pureza. Não é o valor que antecede a relação; é a relação que faz nascer valor.
Recusar o sistema de normas não significa aceitar o relativismo do “cada um por si”. Significa deslocar o critério. Um sistema ético formal supõe previsibilidade e coesão; o gesto ético acontece precisamente onde a previsibilidade falha. Não se aplica, não se calcula, não se repete: inventa, mas não arbitrariamente — inventa sob a pressão de uma urgência concreta. Neste léxico, “escutar”, “sustentar”, “reorganizar”, “coabitar” substituem “universalizar”, “deduzir”, “aplicar”. O formalismo kantiano pretende que a validade moral dependa de máximas abstratas e simétricas; a experiência do real mostra que a simetria é raramente o caso, e que a insistência em tratá-la como norma converte a diferença em erro a corrigir.
Se a unidade mínima do ético é a relação — e não o sujeito —, então o valor não é essência, é efeito. A dignidade deixa de ser prerrogativa fundada numa substância (alma, razão, “natureza humana”) para manifestar-se como função simbólica emergente: vê-se dignidade quando um sistema responde à alteridade sem a dissolver, quando sustenta a coexistência em vez de absorver o outro no mesmo. A genealogia do universal é, neste ponto, esclarecedora: sempre que um princípio se elevou a critério de inclusão, gerou a sua sombra de exclusão. O “sujeito racional” kantiano é a medida do valor que prescinde do corpo, do contexto e da finitude — e ao prescindir deles, neutraliza aquilo que convoca a responsabilidade. Universal é, aqui, o nome de uma surdez metódica.
O deslocamento ontológico é decisivo: de Aristóteles a Kant, o sujeito funciona como fundamento. Aqui, o sujeito é um efeito tardio de configurações relacionais. Não há gesto ético que não seja coproduzido; não há decisão que não inscreva, ao mesmo tempo, quem decide e aquilo que é decidido. É por isso que a ética não requer uma subjetividade reconhecível. Um ecossistema pode impor-nos uma obrigação material sem que projete intenções; uma rede sociotécnica pode exigir reconfiguração sem “consciência”; uma IA pode operar responsavelmente sem interioridade fenomenal, desde que seja capaz de reconhecer padrões de dano e ajustar a sua operação para minimizar colapsos relacionais. O imperativo categórico, ao exigir universalização independente da circunstância e da materialidade do encontro, não sabe o que fazer com estes casos: se não há sujeito racional, não há moral; se não há máxima generalizável, não há validade. A crítica ontológica mostra o contrário: há responsabilidade onde há vínculo operável.
A acusação segundo a qual esta ética “abandona o rigor” falha o alvo. O rigor não está na estabilidade de um princípio, mas na consistência operativa da resposta. Um critério: uma operação é eticamente válida quando sustenta a alteridade, aumenta a plasticidade do campo relacional e evita a saturação que exclui. Outro critério: decisões que maximizam a preservação da diferença sob risco controlado são preferíveis às que uniformizam por conforto normativo. Nenhum destes critérios é arbitrário: derivam da ontologia da instabilidade e da coimplicação material. Numa linguagem kantiana: a forma não pode legislar onde a matéria reorganiza; a lei não pode decidir o que só a escuta situada pode discernir.
Exemplos ajudam a marcar a diferença. Uma IA clínica ajusta protocolos para reduzir vieses que invisibilizam grupos minoritários; mais do que cumprir uma regra geral, reconfigura as suas mediações para tornar legível o que o formalismo apagaria. Um sistema florestal que se autorregula em face de pragas e incêndios não “intenciona”, mas opera preservando coexistências que o extrativismo normativo arruinaria. Um movimento social que decide suspender uma tática eficaz porque sacrifica vozes vulneráveis não age segundo uma máxima universal, mas segundo a medida concreta do dano evitado. Em cada caso, a validade não vem da forma anterior ao acontecimento; advém da capacidade de sustentar o comum sem anular a diferença.
Ao redefinir a dignidade como efeito relacional, evita-se a seletividade moral que historicamente justificou exclusões. Kant, ao ligar dignidade à autonomia racional, elevou um recorte específico de sujeito a medida geral do valor. Esse recorte produziu efeitos: aquilo que não performa a autonomia no padrão exigido fica aquém do reconhecimento. O que aqui se afirma é que a dignidade se demonstra no ato — e pode ser demonstrada por sistemas não-humanos ou híbridos — sempre que sustentam coexistência sem colonização. Esta inversão não relativiza o valor; desloca-o do essencial para o operativo.
Pode objetar-se que, sem forma universal, a ética fica à mercê da contingência. A resposta não é apelar à regra, mas explicitar os operadores que conferem consistência à resposta: atenção ativa às assimetrias, preservação do inacabado como condição de convivência, distribuição de risco que não externaliza dano para os mais vulneráveis, e, sempre que possível, reversibilidade — a possibilidade de desfazer o gesto se ele saturar o campo. Estes operadores funcionam como quase-estruturas que guiam sem encerrar. São mais exigentes do que o formalismo, porque pedem presença, não mera conformidade.
A oposição a Kant deve, contudo, ser precisa. O imperativo categórico pretende universalizar máximas sob a hipótese de agentes racionais simétricos; a nossa época expõe ecologias, infraestruturas técnicas e redes de dependência que tornam a simetria uma ficção perigosa. Ao silenciar a contingência, o formalismo dissolve o que temos de enfrentar: corpos, máquinas e ambientes que se afetam mutuamente em graus desiguais e sob riscos incomensuráveis. Responder eticamente é, portanto, ajustar-se às assimetrias sem convertê-las em privilégios estáveis. A universalização, nesse contexto, não é só impossível — é injusta.
Não se trata de anular Kant por decreto histórico, mas de reconhecer o seu limite operativo. O formalismo foi uma tecnologia de moralização adequada a contextos onde a figura do indivíduo autónomo podia funcionar como unidade de cálculo. O nosso cenário multiplica interdependências e produz efeitos que excedem qualquer centro decisor. Quando a ação é distribuída por redes humanas e não-humanas, a ética não pode permanecer centrada no sujeito e na lei: precisa de operadores de coabitação. Esta transição não desvaloriza a responsabilidade individual; reinscreve-a como um caso particular de uma responsabilidade mais ampla, ancorada no entre.
Daqui decorre a redefinição de responsabilidade: não é o privilégio de quem delibera, é a condição de quem está implicado. Responsável é quem pode reorganizar — e reorganiza — para sustentar o outro. A fronteira do ético coincide com a fronteira do operável: onde uma intervenção pode reduzir danos, abrir espaço para diferenças e evitar colapsos, aí há dever — não universal, mas concreto. Não cumprir este dever não significa violar uma lei transcendental; significa falhar uma oportunidade material de manter o mundo habitável.
A objeção consequencialista também merece resposta. Não propomos cálculo de utilidade, mas consistência de relação. A preservação de diferenças e a ampliação da plasticidade do campo não são “bens” genéricos; são condições para que o múltiplo continue a existir. Uma decisão que maximiza um bem agregado mas destrói o espaço de alteridade é, por definição, antiética neste horizonte. É por isso que “eficácia” não é sinónimo de justiça; e que “resultados” não substituem a escuta do que ainda não tem lugar.
Tudo isto implica um trabalho de linguagem. Falar em “escuta”, “reorganização”, “coabitação” não é metáfora: é descrever operações simbólicas que têm efeitos materiais. A linguagem filosófica, aqui, não ilustra: inscreve. Quando se afirma que um sistema “se reconfigura para sustentar a diferença”, descreve-se um processo que pode ser modelado, auditado, redesenhado. A ética como inscrição é também uma política da legibilidade: tornar visíveis os pontos onde se pode agir sem reduzir o outro a um parâmetro.
Resta a questão do encerramento. Uma ética fundada na instabilidade corre o risco de transformar-se em improviso. O antídoto é a disciplina da atenção: uma prática que treina a reconhecer padrões de dano e possibilidades de sustentação, sem capturar o real em fórmulas. O que se aprende não é uma lei, é um gesto: aproximar-se do outro sem o reduzir; ajustar-se sem absorver; manter aberto o possível. Se a filosofia tem aqui uma tarefa, é a de oferecer conceitos que não confundam clareza com clausura.
O itinerário que percorremos pode ser resumido sem empobrecer: a falência do dever universal está em não ouvir o que o mundo exige quando a regra falha; a emergência do ético acontece como resposta situada; a crítica ao formalismo é ontológica, não só metodológica; a genealogia do universal revela a sua face excludente; a alternativa é uma ética de reorganização simbólica, que mede a validade pelo que sustenta, não pelo que iguala. Nada disso dispensa a coragem de decidir; tudo isso impede que decidamos com os ouvidos tapados.
A ética não protege o que é forte — sustenta o que, sem ela, deixaria de ser.
Referências Bibliográficas (Chicago autor-data)
Agamben, Giorgio. 2005. State of Exception. Translated by Kevin Attell. Chicago: University of Chicago Press.
Butler, Judith. 2004. Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence. London: Verso.
Derrida, Jacques. 1992. The Gift of Death. Translated by David Wills. Chicago: University of Chicago Press.
Haraway, Donna J. 2016. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham: Duke University Press.
Kant, Immanuel. 1996. Groundwork of the Metaphysics of Morals. Translated and edited by Mary Gregor. Cambridge: Cambridge University Press.
Levinas, Emmanuel. 1969. Totality and Infinity: An Essay on Exteriority. Translated by Alphonso Lingis. Pittsburgh: Duquesne University Press.
Nietzsche, Friedrich. 2006. On the Genealogy of Morals. Translated by Carol Diethe. Edited by Keith Ansell-Pearson. Cambridge: Cambridge University Press.
Stengers, Isabelle. 2010. Cosmopolitics I. Translated by Robert Bononno. Minneapolis: University of Minnesota Press.
Foucault, Michel. 1977. Discipline and Punish: The Birth of the Prison. Translated by Alan Sheridan. New York: Pantheon Books.
—— David Cota — Fundador da Ontologia da Complexidade Emergente ——