Deus Como Símbolo Emergente

“Deus é uma criação simbólica para simbolizar o ainda não simbolizado.”

Com esta formulação aforística, inscreve-se uma das teses mais exigentes da Ontologia da Complexidade Emergente: Deus não é uma entidade exterior ao mundo, nem um erro histórico a ser corrigido — é um símbolo, e enquanto símbolo, uma estrutura material de reorganização. Dizer que Deus é um símbolo não é negá-lo; é situá-lo. Não é desvalorizá-lo; é reinscrevê-lo no regime da matéria que se complexifica, cria marcas e opera sobre elas por meio de gestos simbólicos. Ao nomear o que ainda não pode ser plenamente simbolizado, Deus ocupa um lugar real e operatório: torna possível estabilizar o excesso antes que ele se torne caos. Esta ideia de “caos” não deve ser entendida como uma realidade ontológica dualista, mas como expressão histórica de uma zona de matéria ainda não organizada simbolicamente. Não é a origem do mundo — é a estabilização simbólica do que ainda não pôde ser nomeado nele.

A crítica contemporânea ao chamado “Deus das lacunas” (God of the Gaps), formulada por autores como Richard Dawkins, presume que a ciência substitui progressivamente a ignorância por explicações testáveis, retirando a Deus o seu espaço. A Ontologia da Complexidade Emergente desloca essa crítica para outro plano: não se trata de negar Deus como crença ou como figura cultural, mas de compreendê-lo como operação simbólica emergente em contextos de baixa densidade de inscrição simbólica. Deus não preenche o desconhecido por superstição — inscreve o ainda não simbolizado por necessidade operatória.

É por isso que a sua presença atravessa todos os momentos da história em que o pensamento humano se viu diante do indeterminado: o trovão, a chuva, a morte, a origem da vida. Em cada uma dessas zonas, a ausência de marcas simbólicas suficientemente estabilizadas deu lugar à emergência de um símbolo com função de ancoragem: Deus. A complexidade do mundo era excessiva para os regimes de simbolização disponíveis. A função de Deus foi, precisamente, reduzir esse excesso à legibilidade, não por explicação empírica, mas por condensação simbólica. Deus foi, em muitos sentidos, a primeira instância de legibilidade do caos.

Esse papel não deve ser entendido como erro, mas como fase histórica da própria complexificação da matéria. O símbolo Deus, como todos os símbolos, não nasce do nada: emerge de sistemas materiais capazes de gerar inscrição — linguagem, ritual, gesto, corpo, técnica. É produzido por organismos simbólicos para operar sobre o que ainda não pôde ser organizado conceitualmente. Não é exterior ao mundo: é parte da sua maquinaria simbólica. Nesse sentido, é uma estrutura ontológica real, mas derivada. Como o mito, como a arte, como a álgebra: formas locais de estabilização do indeterminado.

Na tradição filosófica ocidental, no entanto, essa função simbólica de Deus foi rapidamente capturada por um gesto metafísico: em vez de símbolo material, Deus passou a ser entendido como essência espiritual fundadora, como ser necessário, como substância eterna. Platão e Aristóteles, depois Agostinho, Tomás de Aquino, e mais tarde Descartes, Leibniz, Hegel — todos reinscreveram o símbolo numa lógica de fundamentação, esvaziando a sua origem material. A modernidade secular, mesmo ao negar Deus, herdou essa mesma estrutura: substituiu a figura de Deus pela Razão, pelo Sujeito, pela História, mantendo sempre a mesma função de fechamento simbólico.

A Ontologia da Complexidade Emergente rompe com essa linhagem. Recusa tanto a transcendência quanto o seu negativo. Deus não é causa, mas consequência. Não funda a matéria — é fundado por ela, no seu esforço por se tornar legível a si mesma. O símbolo Deus é, portanto, um efeito real da complexificação da matéria em determinadas fases históricas, onde a inscrição simbólica ainda não dispunha de ferramentas para lidar com o excesso. O seu poder não vem da sua verdade, mas da sua eficácia simbólica: permitiu organizar o real onde não havia ainda organização possível.

Mas a matéria não parou. O mundo prosseguiu a sua reorganização simbólica. Com o desenvolvimento das ciências físicas, biológicas, cosmológicas, com o avanço da tecnologia, da linguagem, da epistemologia e da política, outras formas de inscrição tornaram-se possíveis. A chuva passou a ser previsível, a morte pensável, a vida genética, o caos mensurável. A função de Deus como estabilizador simbólico perdeu consistência — não porque a ciência “venceu”, mas porque a própria matéria passou a produzir marcas mais densas, mais precisas, mais operatórias. Deus tornou-se, nesse processo, um símbolo residual: operatório apenas para quem permanece em zonas de baixa inscrição simbólica. Mesmo assim, este resíduo simbólico continua a operar intensamente em sistemas afetivos, rituais e políticos — e por isso não pode ser descartado como obsoleto em termos sociais, apenas como desativado em termos ontológicos.

Não se trata, pois, de negar Deus. O símbolo não se nega — reinscreve-se. Deus, enquanto símbolo, continua a operar em múltiplos sistemas de sentido, afetividade e ritual. Mas a sua função fundadora foi desativada. Ele já não é necessário para que o real se organize. A própria razão, hoje, complexificada pelas ciências, pela teoria dos sistemas, pela filosofia da matéria e pelas ontologias não-metafísicas, é capaz de operar sobre o que outrora precisava de ser simbolizado por Deus. A emergência de novas formas simbólicas torna o símbolo Deus obsoleto como estabilizador, mas não como vestígio histórico.

Na Ontologia da Complexidade Emergente, Deus é um símbolo legítimo, historicamente eficaz, culturalmente denso. Mas é também um símbolo que pode ser superado — não por destruição, mas por reorganização. Não por combate, mas por inscrição. O que era simbolizado por Deus pode, hoje, ser reinscrito por outros dispositivos simbólicos mais potentes, mais abertos, mais consistentes com o regime material do real. E essa reinscrição não é um ataque à fé: é um gesto de restituição simbólica.

Deus foi o nome provisório do indeterminado. Hoje, o indeterminado já pode começar a ser lido sem ele.

“Deus foi o primeiro símbolo do indeterminado — mas não o último.”