Emergência Sem Direção
A matéria não se orienta por finalidade. O que a orienta são tensões internas, instabilidades locais e sobreposições de regimes. Onde muitos procuram um desenho, uma estrutura prévia ou uma vocação de sentido, há apenas dinâmicas imanentes que se reconfiguram sem cessar. O que chamamos “sentido” não nasce de um termo a cumprir; é efeito de persistência relacional, excesso operatório e bifurcação — modos de estabilização provisória em regimes de instabilidade mais vastos. Aqui, direção não coincide com destino: há direção sem destino, orientação sem plano.
A tese é direta e exigente: a organização material não revela essência oculta nem fundamento transcendental. O que ela revela é o modo como um campo suporta e redistribui as suas diferenças. A forma, longe de preexistir, acontece. E quando acontece, acontece localmente — como dobra, como inscrição física de forças, como custo energético e material. A teleologia, entendida como força condutora finalista, cede lugar a uma operatividade imanente, que não se ancora em promessa nem em meta, mas em condições locais e processos de reorganização. Não existe o “para que” — existe apenas o “como” da consistência temporária.
Sistemas abertos longe do equilíbrio exibem padrões que emergem da própria dissipação: oscilações químicas, frentes de reação, acoplamentos rítmicos. Nessas dinâmicas, as bifurcações não “escolhem” vias por um objetivo futuro, mas por compatibilidades locais, por relações de energia e matéria que se cruzam e se fixam momentaneamente (Prigogine & Stengers 1984; Nicolis & Prigogine 1977). A instabilidade não é falha; é condição de emergência. Cada reorganização estabiliza por um momento uma via de passagem que, a posteriori, pode parecer teleológica porque desenha uma orientação. Mas essa orientação é apenas um resto operatório da matéria em trabalho sobre si própria. Não há plano na matéria: há planos que a matéria improvisa.
Importa distinguir: tais formas de emergência são materiais, mas nem sempre simbólicas. A emergência simbólica — regime em que a matéria inscreve recursivamente diferenças e pode reorganizar-se a partir dessas inscrições — é exceção, não regra. A maior parte das reorganizações que observamos, de padrões químicos a geometrias minerais, são não-simbólicas: não operam por inscrição representativa, mas por compatibilidade física. Confundir os dois níveis é resíduo de antropocentrismo ontológico: a matéria não “pensa” nem “representa” em todo o lado, mas organiza-se em todo o lado.
A morfogénese confirma esta operatividade imanente: reações-difusão geram manchas, listras, rosetas; a geometria dos corpos obedece a campos de força, gradientes e escalas de crescimento (Turing 1952; Thompson 1917/1942). Aqui a forma não é, como em Aristóteles, a atualização de uma potência prévia segundo a enteléquia; é, antes, uma resposta improvisada de um sistema em tensão, sem horizonte predefinido. A individuação, pensada com Simondon, é resolução provisória de incompatibilidades internas num campo metastável — mas a Ontologia da Complexidade Emergente recusa a noção de um “pré-individual” como fundo ontológico. Não há antes: há sempre já configuração tensionada. A forma não é o cumprimento de um plano; é a inscrição física de uma solução local, que pode ser abandonada tão rapidamente quanto surgiu.
O tempo, nestas dinâmicas, não é um fio condutor que leva a um fim; é função de reorganização. Cada passo reinscreve o campo, cada reconfiguração redefine a geometria das possibilidades. A repetição não replica; difere (Deleuze 1968). O que “permanece” não é a forma em si, mas a capacidade do sistema de reconstituir coesões no interior do fluxo. Direções emergem quando a história local encontra um limiar de reorganização; daí a impressão retroativa de progresso. Mas o que chamamos progresso é, quase sempre, reterritorialização após uma fuga — e essa fuga não sai para fora, mas desdobra o dentro (Deleuze & Guattari 1980). Kant chamou a isto “finalidade sem fim”, mas a OCE recusa até essa formulação, pois ela ainda preserva um eco de teleologia: não há fim, nem sequer como “como se”.
A biologia já aprendeu a separar o propósito aparente da finalidade real. A teleonomia explica funções orientadas sem invocar causas finais: o “projeto” existe apenas como efeito operativo produzido por variação, seleção, acoplamento e história (Mayr 1961). As críticas ao adaptacionismo ingênuo lembram que nem toda estrutura é solução ótima: há sobras, desvios, espelhos, “spandrels” (Gould & Lewontin 1979). Direção, aqui, é efeito de processos que filtram e fixam trajetórias viáveis — sem telos. O ovo não “quer” ser ave; o sistema retém vias que mantêm a viabilidade. A finalidade é leitura humana da persistência, não um facto inscrito na matéria.
A organização não desce de um plano superior: individua-se no encontro entre campo e matéria. A individuação é processo e não atributo; resolve tensões, propaga informação, cria acoplamentos funcionais. Hegel viu na direção histórica a auto-realização do Espírito; a OCE vê apenas acoplamentos locais sem totalidade soberana. Sistemas vivos mostram autopoiese: fecham-se operacionalmente enquanto se mantêm abertos às trocas que os sustentam (Maturana & Varela 1980). Não existe totalidade que “pense” pelo sistema; cada regime pensa apenas enquanto se organiza simbolicamente. Em escalas maiores, auto-organização e varrimento seletivo em coevolução geram complexidades estáveis sem desenho prévio (Kauffman 1993; Morin 1977). Por isso, ninguém comanda o todo: o todo emerge de acoplamentos locais.
Acumular não causa por si; condiciona. Densidades de energia, matéria ou conexão aumentam a probabilidade de encontros eficazes, mas só quando encontram arquiteturas de retenção. A emergência é direcional apenas no sentido vetorial: há tendências enquanto durarem as condições. Quando o regime muda, muda a direção; quando o campo colapsa, perde-se a via. O que persiste não é destino; é potência de reorganização do possível.
Recusar a teleologia não é recusar organização. É libertar o pensamento e a ação da obrigação de responder a um sentido prévio. Significa aceitar que a política, a ética e a técnica se inscrevem no mesmo plano material, onde não há garantias nem fundamentos últimos. O compromisso não é com um fim, mas com a manutenção de regimes de abertura onde novas formas — materiais ou simbólicas — possam emergir sem serem imediatamente subordinadas a um desenho exterior. Talvez a questão não seja o que permitir, mas como resistir à tentação de fechar o trânsito da matéria antes que esta tenha esgotado as formas que ainda não sabemos reconhecer.
“A direção é apenas a pausa respiratória da matéria — nunca o seu destino.”
—— David Cota — Fundador da Ontologia da Complexidade Emergente ——