A Origem Que Se Quis Fluxo
No pensamento contemporâneo, a origem deixou de se querer ponto fixo, eterno ou inaugural. O seu lugar deslocou-se para o fluxo, para a continuidade sem pausa, para a proliferação incessante de formas que não repousam sobre nenhum fundamento imutável. Esta mutação conceptual não é um simples abandono das heranças clássica e moderna, mas uma inversão do gesto que as animava: onde antes se buscava estabilidade — seja na substância fixa, seja no corte fundador —, passa-se a celebrar a variação sem limite como se, na ausência de qualquer referência imóvel, o real finalmente se libertasse das amarras ontológicas que o constrangiam. No entanto, este elogio do fluxo absoluto arrisca-se a instaurar uma nova forma de absolutização: a da indeterminação total.
Em Bergson, o tempo real é a duração vivida, indivisível e criadora, em contraste com o tempo espacializado da ciência, que o fragmenta e o mede como se fosse extensão. A durée bergsoniana é fluxo criativo puro, no qual a novidade é ontologicamente inevitável. Contudo, sob esta recusa da fixidez permanece um traço de unificação vitalista: o élan vital, impulso original que anima e orienta a criação. Assim, mesmo nesta filosofia da mudança, subsiste uma espécie de coesão interna que, se não é teleológica no sentido clássico, conserva uma unidade subjacente. A recusa do fixo é, neste caso, inseparável da afirmação de uma força criadora universal.
Whitehead leva a lógica do processo a um nível de radicalidade sistemática: nada é substância imóvel, tudo são “ocasiões de experiência” em inter-relação. A realidade é a teia viva dessas ocasiões, e o ser é inseparável do devir. Mas aqui também se insinua um princípio de coesão global: a totalidade dos processos está unida por um campo de relações que garante a inteligibilidade do real. Ao mesmo tempo que dissolve o ponto fixo, a filosofia do processo reinstaura, sob nova forma, a ideia de uma ordem universal que abraça todos os acontecimentos.
O pós-estruturalismo desloca ainda mais a origem para o campo da multiplicidade pura. Em Deleuze, o real é produção contínua de diferenças, sem modelo anterior, sem forma final. Não há essência que preceda a criação, apenas um plano de imanência onde as variações se engendram mutuamente. Em Foucault, a genealogia mostra como as “origens” são sempre construções retrospetivas, efeitos de discursos que organizam o passado segundo as necessidades do presente. A ideia de começo puro dissolve-se numa rede de práticas, relações de poder e regimes de verdade. No entanto, nesta recusa dos fundamentos, a materialidade não discursiva tende a ficar numa penumbra conceptual: o risco é que a origem, tornada puro efeito de discurso, se afaste das condições concretas que a tornam possível.
As ciências contemporâneas reforçam esta sensibilidade ao processo e à contingência. As teorias do caos mostram que sistemas dinâmicos são sensíveis às condições iniciais e que a sua evolução é imprevisível a longo prazo; as teorias da complexidade descrevem padrões emergentes que se formam sem comando central; a cosmologia inflacionária projeta um universo em expansão contínua, com múltiplos começos locais. Contudo, também aqui subsiste a tentação de descobrir meta-padrões, leis universais ou princípios de auto-organização que, se não são pontos fixos no sentido clássico, funcionam como invariantes formais que orientam todo o devir. Mesmo no discurso do caos, procura-se muitas vezes uma ordem oculta.
A Ontologia da Complexidade Emergente recusa tanto o ponto fixo quanto o fluxo absoluto. A origem, tal como a entendemos, não é nem fundamento imóvel, nem indeterminação total: é um acontecimento material situado, que emerge de compatibilidades transitórias e se dissolve quando estas se esgotam. Não existe criação ex nihilo nem continuidade infinita indiferenciada; toda emergência requer campos locais de relativa consistência, capazes de sustentar a organização funcional por um tempo limitado. O fluxo sem zonas de estabilidade não permite o aparecimento de estruturas operativas; a estabilidade sem fluxo impede a criação de novas configurações. O que chamamos “origem” é sempre o ponto de encontro provisório entre fluxos e estabilizações, entre variação e forma, entre contingência e organização.
A crítica ao fluxo absoluto não é uma defesa disfarçada do fixo, mas a recusa de toda absolutização — seja do imóvel, do inaugural ou do fluido. Ao reconhecer que toda origem é também desfecho de processos anteriores e condição para processos futuros, evita-se a ilusão de um começo sem história ou de um devir sem forma. O pensamento contemporâneo, ao libertar-se da fixidez, ganhou a possibilidade de pensar a mudança como motor do real; mas, ao absolutizar o fluxo, arrisca-se a dissolver a própria possibilidade de diferenciação. É neste equilíbrio instável — mas necessário — entre variação e consistência que a origem encontra a sua realidade concreta, não como mito fundacional, mas como efeito sempre localizado de uma reorganização da matéria.
"O fluxo sem forma é tão ilusório quanto a forma sem fluxo:
a origem vive apenas na frágil trégua entre ambos."
—— David Cota — Fundador da Ontologia da Complexidade Emergente ——