O Princípio Que Se Quis Eterno

Perceber o modo como a filosofia clássica quis nomear a origem exige perceber, antes de tudo, a gramática de inteligibilidade que a sustenta: quando a experiência aparece como instável e fragmentada, a razão procura um ponto que não se mova, não por gosto de imobilidade, mas por necessidade de medida. Na palavra grega archê cruzam‑se princípio e governo, começo e regência: a origem vale como começo apenas porque pode governar o que dela procede. É deste nexo que nasce a associação, tenaz e recorrente, entre o primeiro e o imóvel — associação que não é capricho especulativo, mas resposta estratégica a um problema de conhecimento.

Parménides formula a resposta mais rigorosa e também a mais custosa. O ser é, o não‑ser não é: não há via pensável para a ausência. Desse axioma segue‑se a rejeição de génese e corrupção, multiplicidade e devir, antes e depois; o pensamento coincide com o ser e não pode pensar o que não é. A inteligibilidade compra‑se ao preço da eliminação do tempo; a verdade (alétheia) exige um real uno e imutável, enquanto a doxa descreve o mundo opinável dos mortais. Este gesto não erra: delimita o que a razão pode dizer sem se contradizer. Mas tem um custo ontológico e cosmológico elevado: a pluralidade sensível torna‑se aparência; a mudança, um erro sem lugar no discurso que pretende necessidade. O ganho é a coerência; a perda, o mundo.

Heraclito é apresentado como antípoda, mas a sua divergência é mais subtil. “Tudo flui” não equivale a indeterminação; o devir não é dissolução, é tensão medida. O logos, comum e anterior, não fixa um ser imóvel; fixa uma proporção que regula os contrários. Guerra é pai de todas as coisas porque a ordem nasce do conflito; mas há medida (metron) na alternância, razão na oscilação. A origem, aqui, não é substância; é norma inscrita no real, uma legalidade que não repousa em entidade, mas em ritmo. Onde Parménides fixa o ser para salvar a necessidade, Heraclito fixa o logos para salvar a inteligibilidade do próprio devir. Em ambos, o lugar da origem é um lugar de exceção: o que garante o pensamento não participa do movimento que se pensa.

Platão transfere esta exceção para um plano explicitamente separado. A teoria das Formas exige que a ciência (epistémê) incida sobre o que não muda; o sensível, posto sob a marca da participação (methexis), é cópia imperfeita de modelos perfeitos. O problema de Parménides — como pensar sem contradição — e o problema de Heraclito — como ordenar o fluxo — convergem num mesmo dispositivo: a verdade reside no inteligível. O Timeu radicaliza esta arquitetura com o artífice e o paradigma; o tempo torna‑se “imagem móvel da eternidade”, isto é, derivação do que permanece. A chôra, recetáculo de todas as formas, não possui natureza própria; disponibiliza‑se à inscrição da Ideia. A origem platónica não é início cronológico, mas causa paradigmática: aquilo à luz do qual tudo se torna cognoscível. Deste modo, a imutabilidade deixa de ser apenas garantia lógica e torna‑se hierarquia ontológica: o que verdadeiramente é encontra‑se fora do tempo, e é essa exterioridade que autoriza o juízo.

Aristóteles recusa o corte (chôrismos) entre inteligível e sensível, mas conserva a exceção sob outra figura. A sua ontologia é uma engenharia do movimento: forma e matéria, ato e potência, quatro causas, continuidade do devir. O motor imóvel é causa final, não empurra; atrai como perfeição pensante que pensa a si mesma (noêsis noêseôs), e por isso move sem se mover. A teleologia, aqui, não é devaneio edificante; é gramática de explicação: o porquê do devir exige um fim intrínseco às coisas, princípio de unidade que governa a passagem da potência ao ato. A origem aristotélica não se afasta do mundo, organiza‑o a partir de dentro. Mas permanece intacta a estrutura de exceção: para que o movimento seja inteligível, há que pensar um princípio que, para ser princípio, não pode ele mesmo estar em movimento. Concilia‑se o mundo com a razão, mas mantém‑se o privilégio do imóvel como garantia última de sentido.

Vistas em conjunto, estas quatro figuras não repetem a mesma tese; compõem uma tipologia da fixação: aqui, fixidez ontológica (Parménides); ali, fixidez normativa (o logos heraclíteo); acolá, fixidez paradigmática (as Formas platónicas); por fim, fixidez teleológica (o motor imóvel como fim puro). A diferença é real, a função é análoga: sustentar a ciência e a filosofia num princípio que não seja tragado pelo que pretende explicar. É decisivo sublinhar que se trata de construções coerentes com o horizonte epistémico do seu tempo. A recusa da dispersão não é medo; é método. Quando a experiência não oferece dispositivos estáveis de mensuração e repetição, a estabilidade precisa ser pensada como condição do conhecer. O “princípio eterno” não é uma fuga; é uma técnica de anulação do ruído.

O reverso desta técnica é a sistemática subordinação do tempo. Em Parménides, o antes e o depois são excluídos do discurso verdadeiro; em Heraclito, o tempo é a arena onde a medida se cumpre, não o seu fundamento; em Platão, o tempo deve a sua figura a um modelo que o transcende; em Aristóteles, a temporalidade do movimento realiza uma tendência que a antecede como forma e fim. Em nenhuma destas configurações o tempo possui primazia ontológica; é sempre derivado daquilo que, para fazer conhecer, não pode sofrer o que o tempo impõe. Este é o gesto clássico por excelência: tornar a variação pensável limitando‑a por um regime de permanência que lhe é superior.

Importa, contudo, não confundir esta superioridade filosófica com imutabilidade física. O imóvel de Parménides não é uma partícula; o logos de Heraclito não é uma constante mensurável; a Ideia de Platão não é estrutura matemática disponível à observação; o motor imóvel de Aristóteles não é um objeto cósmico silencioso. O vocabulário da permanência opera aqui num plano lógico‑ontológico: define as condições da verdade e do ser, não hipóteses sobre o comportamento de corpos no espaço. Dizer que o tempo é derivado não é propor uma lei natural, é propor uma hierarquia de inteligibilidade. Evita‑se, assim, o anacronismo de ler o imóvel clássico com os olhos de uma física que não existia: o que estava em causa era a arquitetura do discurso verdadeiro, não a descrição empírica de movimentos.

Este núcleo clássico tornou‑se fecundo precisamente porque deu uma solução unificada a problemas heterogéneos: estabilizou a relação entre pensamento e ser, deu ao conhecimento um objeto digno, reconfigurou o estatuto do sensível e impôs uma noção de causa adequada à explicação. O preço foi a sobredeterminação do princípio: para garantir o saber, a origem ficou investida de um privilégio ontológico que, de formas diversas, a colocou acima do devir. As divergências internas — do uno imóvel à tensão medida, do modelo eterno ao fim intrínseco — não eliminam a matriz: o que verdadeiramente começa, governa; o que governa, não muda.

Colocada neste ponto, a crítica não é moral nem pedagógica; é genealógica. O que aqui se interroga não é a “verdade” de Parménides, Heraclito, Platão ou Aristóteles, mas a eficácia do dispositivo que herdaram e transformaram: pode a inteligibilidade continuar a depender de uma exceção ontológica ao movimento? A interrogação não desqualifica a solução clássica; mede a sua área de validade. Que a razão precisasse de um imóvel para nascer como razão é uma hipótese historicamente inteligível. Que continue a precisar dele é o que deve ser examinado quando se troca o horizonte de essências por horizontes de processos.

À luz desse exame, a Ontologia da Complexidade Emergente desloca o problema sem desautorizar a sua história. A origem deixa de ser substância, modelo ou fim; torna‑se nome para o acontecimento local em que um campo material‑simbólico alcança consistência suficiente para instituir regularidade. A estabilidade não precede; emerge como efeito de compatibilidades que podem desfazer‑se; o tempo não é devir degradado de uma eternidade, é o próprio meio em que as regularidades se instituem e se transformam. Ao invés de um princípio que governa por exceção, propõe‑se uma governança imanente das formas por processos de organização que não precisam de exterior ontológico. Esta reformulação não converte os clássicos em erro; mostra antes que a estratégia de salvar o saber pela permanência pode ser substituída por outra: salvar a inteligibilidade pela análise das operações que produzem, mantêm e desfazem as figuras do mundo. Onde o passado exigiu um “princípio que se quis eterno”, o presente pode reconhecer principiações plurais, finitas e revisíveis, sem renunciar ao rigor que motivou, desde o início, a procura de um começo capaz de governar.


"A origem não é o que permanece;
é o que se instala apenas enquanto dura a sua eficácia material."


—— David Cota — Fundador da Ontologia da Complexidade Emergente ——