A Forma Como Resto

No enquadramento aqui adotado, o termo “resto” não remete a um resíduo inerte nem a um excesso sem função, mas designa o resultado operatório de um processo de reorganização material ou simbólica que, após a sua fase ativa de formação, permanece como estrutura funcional enquanto essa funcionalidade se mantém. Ao contrário de uma sobra descartável, o resto é uma permanência relativa, um estado em que a matéria ou a configuração simbólica preserva coerência interna suficiente para continuar a operar no sistema que a acolhe. A sua persistência não deriva de qualquer essência subjacente, mas da capacidade de responder a compatibilidades locais e de manter-se relevante no contexto em que se inscreve.

Deste modo, “resto” não equivale a “sobrevivência” no sentido biológico nem a “remanescente” no sentido arqueológico. Trata-se de uma categoria operatória que descreve aquilo que, após uma reorganização, não se dissipa nem se dissolve imediatamente, mas estabiliza temporariamente energia, forma ou sentido. Tal estabilização não é definitiva; é uma latência ativa, pronta para ser mobilizada por novas reorganizações quando as condições o permitirem.

Esta conceção rompe com a tendência comum, presente tanto na linguagem quotidiana quanto em certas tradições filosóficas, de tratar o resto como passividade ou falha da totalização. Ao invés, o resto é potência residual — não por conservar intacta a totalidade do que foi, mas por manter uma possibilidade de reintegração operatória no fluxo de transformações. Essa possibilidade não se define pela integridade de uma identidade original, mas pela viabilidade funcional que a configuração ainda conserva.

O que distingue o resto de figuras próximas como “vestígio” ou “traço” é precisamente a sua natureza de elemento ainda ativo no interior de um sistema. O vestígio pode ser apenas testemunho de algo passado; o resto, na aceção operatória aqui defendida, é presença efetiva, mesmo que reconfigurada, na ecologia material e simbólica em que se insere. É essa presença funcional que o qualifica como objeto de análise para compreender o modo como a forma se sedimenta sem se fossilizar como essência.

Neste enquadramento, a forma não é o ponto de chegada absoluto de um processo, mas o seu momento de sedimentação provisória — uma pausa relativa num fluxo contínuo de reorganizações. Essa sedimentação resulta de um equilíbrio temporário entre forças materiais e funcionais que, por um intervalo indeterminado, se estabilizam ao ponto de constituir uma configuração reconhecível. A forma, nesse sentido, é menos um produto final e mais um estado transitório dotado de consistência suficiente para ser operado e reconhecido, mas sempre exposto à possibilidade de transformação.

Esta abordagem afasta-se claramente de conceções essencialistas da forma, como as herdadas de Platão, onde a forma ideal é instância permanente que confere identidade ao particular, ou de certas leituras aristotélicas, nas quais a forma é princípio teleológico que conduz a matéria à sua plena atualização. Aqui, a forma não preexiste ao processo, nem o orienta a partir de um fim predeterminado: emerge a posteriori como resultado contingente de interações múltiplas e excessos operatórios que encontram, por um momento, uma compatibilidade suficientemente estável para manter-se.

Esse carácter provisório implica que a estabilidade não deriva de uma essência imutável, mas de uma relação local de forças. Tal estabilidade é, por isso, sempre relativa e reversível: basta uma alteração nas condições que sustentam a sua coesão para que a forma se dissolva, se fragmente ou se reconfigure. A forma é, portanto, uma cristalização temporária do movimento, e não a sua negação.

No diálogo com correntes filosóficas contemporâneas, esta perspetiva aproxima-se das conceções processuais de Whitehead, que vê o real como sucessão de “ocasiões atuais” estabilizadas momentaneamente antes de se dissolverem. Contudo, sublinha-se aqui o papel ativo da forma como resto funcional — não apenas efeito do passado, mas também recurso potencial para novas reorganizações.

Pensar a forma como sedimentação provisória é libertá-la do peso de uma ontologia da permanência e reinscrevê-la no campo da operatividade material. A sua existência é inseparável das condições que a sustentam e, por isso, a análise deve concentrar-se menos no que ela “é” e mais no que ela “faz” enquanto permanece.

A forma nunca surge no vazio, mas como resultado de processos prévios de excesso e instabilidade. O excesso, entendido não como desperdício ou ruído, mas como superabundância operatória da matéria, cria o campo de possibilidades no qual novas configurações podem emergir. A instabilidade funciona como condição dinâmica que impede o sistema de permanecer fechado nas formas anteriores, abrindo espaço para que essa superabundância se reorganize.

Importa sublinhar que não se trata aqui de redefinir nem o excesso nem a instabilidade — já trabalhados noutros pontos da obra —, mas de evidenciar o papel específico que ambos desempenham na génese da forma. Esta não é concebida como resultado inevitável desses fatores, mas como um dos possíveis efeitos estabilizados que podem gerar.

Em termos filosóficos, esta visão contrasta com perspetivas teleológicas, como a de Aristóteles, nas quais a forma é a realização natural da potência contida na matéria. Afasta-se igualmente de leituras dialéticas hegelianas, que tendem a ver a instabilidade como momento de negatividade superado numa síntese final. Aqui, não há reconciliação definitiva: a forma é apenas uma das muitas soluções temporárias que podem emergir do jogo entre excesso e instabilidade.

Este enquadramento encontra ressonância parcial em autores como Simondon, para quem a individuação é um processo em aberto, no qual a forma é menos um estado final do que uma fase de estabilização provisória. Contudo, amplia-se essa visão ao insistir na dimensão de “resto” como conceito operatório: a forma é não só momentânea, mas também excedente em relação ao processo que a gerou. Esse excedente não é causalmente determinante, mas oferece uma reserva de estabilidade que pode ser mobilizada ou corroída por processos futuros.

O limite da forma como resto está justamente na sua não-autossuficiência: não há forma que subsista por si só, desligada do campo material e das forças que a mantêm. Esta dependência significa que a análise da forma nunca pode ser feita isoladamente, mas sempre em relação ao seu processo de formação e às condições que garantem a sua duração.

Toda forma, enquanto resto funcional, carrega em si a possibilidade da sua própria dissolução. Essa dissolução não deve ser lida como falência moral ou catástrofe ontológica, mas como consequência inevitável da variação contínua das condições materiais. A permanência de qualquer forma é uma pausa num fluxo mais vasto de reorganização, e essa pausa só se mantém enquanto a estrutura conservar a capacidade de responder, sem colapsar, às variações que a atravessam.

A dissolução ocorre quando a compatibilidade entre a forma e o meio deixa de produzir efeitos funcionais positivos. Pode tratar-se de uma alteração gradual — como o desgaste de um ecossistema diante de mudanças climáticas lentas — ou de um evento súbito — como a desintegração de uma formação geológica devido a um abalo sísmico. Em ambos os casos, o que está em jogo não é destruição pura e simples, mas reabsorção da forma no campo de forças de onde emergiu.

Este entendimento ecoa certas leituras de Heraclito e de Whitehead, nas quais o ser é pensado como fluxo e a permanência como forma relativa e momentânea de estabilização. Contudo, evita-se aqui qualquer romantização dessa instabilidade: dissolver-se não é “retornar ao Uno” nem “reconciliar-se com o fluxo cósmico”, mas entrar numa nova fase do jogo material, onde outros arranjos, eventualmente mais funcionais, podem surgir.

A dissolução não é o oposto da forma, mas a sua outra face: todo resto funcional traz consigo fragilidades e pontos de rutura que, explorados por variações contextuais, abrem caminho a novas reconfigurações. É precisamente este ponto que diferencia esta abordagem de uma conceção entropista da mudança: não se trata de desgaste irreversível rumo à desordem, mas de um processo de libertação de componentes que podem recombinar-se em novas estruturas.

Do ponto de vista simbólico, este movimento é igualmente relevante: um sistema linguístico, um paradigma científico ou um conjunto de convenções sociais podem perder a sua eficácia operatória e, no entanto, os elementos que os compunham permanecem disponíveis para serem rearticulados. Aqui, a dissolução é também reabertura de possibilidades, e não apenas encerramento de um ciclo.

A forma, entendida como resto funcional, não é destino, mas intervalo. A sua permanência não anuncia o fim de um processo, mas marca uma pausa contingente num campo mais vasto de variação material. Essa pausa não é celebrada como coroamento de uma teleologia nem lamentada como obstáculo à mudança: é, simplesmente.

"Toda forma é pausa na matéria —
e toda pausa é apenas o fôlego breve antes de outra metamorfose."


—— David Cota — Fundador da Ontologia da Complexidade Emergente ——