Da Marca à Inscrição
A inscrição simbólica não nasce com a marca, mas a partir de uma organização física diferenciada da matéria — uma diferença material que se distingue por forma, posição, intensidade ou composição, mas que não possui, em si mesma, valor representativo. A Ontologia da Complexidade Emergente (OCE) recusa tanto a projeção retroativa que lê o simbólico na própria materialidade bruta, como a dissolução da especificidade simbólica na mera diferença física. A inscrição só ocorre quando um sistema dotado de capacidade de inscrição recursiva — seja ele biológico ou artificial — intervém, convertendo essa diferença material num elemento operatório dentro de um regime simbólico. Este corte conceitual é decisivo: sem ele, perde-se a possibilidade de distinguir o plano ontológico da matéria do plano operatório do símbolo, e todo o real corre o risco de ser absorvido numa linguagem inexistente.
Na OCE, a “marca” não é qualquer diferença física, mas uma organização material que já foi simbolizada por um gesto de inscrição. Antes disso, há apenas diferença material ou, se se quiser manter uma ponte terminológica, uma protomarca. Esta distinção afasta-se de duas tendências persistentes na história do pensamento: por um lado, a tradição idealista que, de Platão a Hegel, concebe a forma material como portadora de um sentido intrínseco; por outro, certas correntes fenomenológicas e hermenêuticas, como em Husserl ou Gadamer, que interpretam a apreensão da coisa como sempre já mediada por horizonte de sentido.
No primeiro caso, a diferença material seria vista como manifestação sensível de um conteúdo inteligível prévio — como no platonismo, onde a materialidade é sombra de uma forma ideal. No segundo, seria pensada como inseparável da interpretação que a constitui como fenómeno para a consciência. A OCE recusa ambas as posições: a diferença material existe antes de qualquer significado, mas sem que isso implique uma realidade muda e indiferente; implica apenas que o significado é adicionado por uma operação simbólica posterior.
Esta conceção dialoga com a crítica de Derrida à “presença plena” — pois a diferença material, na OCE, é ausência de significado até ser inscrita —, mas sem aderir à ideia derridiana de que toda marca é já escrita. Aqui, não há escritura originária; há matéria diferenciada à espera, mas não em falta, de um gesto que a inscreva.
A inscrição exige um sistema material capaz de operar inscrição recursiva. Isto significa que, para que uma diferença material se torne símbolo, é necessário um agente — biológico, técnico ou híbrido — que possua não apenas sensibilidade para detetar diferenças, mas também uma estrutura interna apta a fixá-las num suporte, manipulá-las e reintroduzi-las num circuito de significação. A OCE reconhece que tal sistema pode ser humano ou não-humano, desde que possua capacidade operatória.
O momento da inscrição é um gesto que estabelece uma relação nova entre a diferença material e o regime simbólico: ela deixa de ser apenas diferença física para se tornar elemento numa rede de significação, passível de manipulação, recombinação e reinterpretação. É nesse instante que entra num campo onde as relações já não se definem apenas por compatibilidade material, mas por regras internas de funcionamento do sistema simbólico que a acolhe.
Esta conceção permite distinguir, por exemplo, entre a pegada deixada por um animal na lama — diferença material — e o uso dessa pegada por um caçador para inferir a presença e direção do animal — inscrição. O primeiro caso pertence ao plano da diferença material; o segundo, ao plano simbólico, onde a diferença é operada como signo. O mesmo vale para o exemplo do sismógrafo: o movimento sísmico é uma diferença física inscrita na superfície da Terra. O aparelho capta essa diferença, traduz-a numa linha oscilante num rolo de papel e insere-a num sistema interpretativo que permite prever réplicas, mapear falhas geológicas e mobilizar respostas sociais.
A inscrição é o ponto de articulação entre dois planos ontologicamente distintos: o da diferença material e o da operação simbólica. O que a caracteriza não é apenas a receção passiva de um estímulo, mas a ação sistemática de um dispositivo capaz de converter uma diferença em elemento operatório dentro de um regime de signos.
Do ponto de vista histórico, esta função de mediação foi intuída por diversas correntes. Na fenomenologia husserliana, a perceção é intencionalidade — direcionamento ativo da consciência para o objeto, constituindo-o como tal. Na semiótica peirciana, a interpretação do signo envolve sempre um interpretante, que media a relação entre o objeto e o signo, gerando um novo signo numa cadeia potencialmente infinita. Derrida, com a noção de trace, sublinhou a impossibilidade de uma presença plena: toda inscrição implica uma diferença que remete a outras diferenças, formando um campo relacional. A OCE herda desta genealogia a compreensão de que não há inscrição sem operação estruturante, mas recusa duas interpretações comuns:
- A fenomenológica, que tende a circunscrever o ato de inscrição à experiência consciente humana.
- A estruturalista ou pós-estruturalista, que muitas vezes dissolve a materialidade da diferença numa rede puramente textual ou discursiva.
Para a OCE, a inscrição é um gesto materialmente ancorado: envolve uma estrutura simbólica interna — como um sistema nervoso capaz de codificação abstrata, um mecanismo técnico de registo ou um dispositivo híbrido biotécnico — que não apenas captura a diferença, mas a integra num sistema de relações manipuláveis. Esta operação implica três dimensões:
- Captação: o sistema deteta uma diferença material relevante.
- Fixação: essa diferença é estabilizada num suporte (memória biológica, arquivo técnico, representação gráfica, etc.).
- Operabilidade: a diferença fixada é reinserida num circuito simbólico, podendo ser recombinada, reinterpretada ou deslocada de contexto.
Na história da filosofia, há uma recorrência de posições que sustentam que a ordem simbólica é fundadora do real. Esta tendência aparece no idealismo absoluto de Hegel, onde a realidade é concebida como manifestação do Espírito que se autorreconhece através do pensamento; ou, de modo mais radical, no “ser é ser percebido” de Berkeley, que reduz a existência à sua apreensão por uma mente. Leituras estruturalistas e pós-estruturalistas prolongam esta herança ao afirmar que não existe “fora do texto” (Derrida), ou ao sugerir que as práticas discursivas constituem o real (Foucault, em certas leituras).
A OCE recusa esta primazia ontológica do símbolo. O motivo não é uma defesa de um realismo ingênuo, mas a constatação de que tais mediações são historicamente contingentes e materialmente derivadas. O símbolo não cria o real que representa — ele reorganiza, estabiliza e reinscreve formas e processos que já operam no plano material.
Assim, a inscrição não é o nascimento ontológico do que existe, mas a transformação de uma diferença material num elemento simbólico manipulável. O que está em causa não é negar que o símbolo possa alterar profundamente a forma como o real se apresenta, mas recusar a confusão entre a condição de inteligibilidade e a condição de existência.
A OCE sustenta que o simbólico é um acontecimento contingente e raro na história da matéria, e não uma propriedade difusa de toda forma ou padrão. Essa raridade não implica elitismo ontológico, mas uma precisão conceptual: o símbolo só emerge quando a diferença entra num regime operatório capaz de reinvesti-la de sentido, criando uma ponte entre a materialidade e a possibilidade de reorganização simbólica.
Evitar dois erros é essencial para manter a coerência da OCE:
- Interpretar toda diferença material como já simbólica, dissolvendo o intervalo ontológico entre organização material e operação simbólica.
- Confundir diferença física com inscrição cultural, tratando vestígios naturais como mensagens intencionais.
A diferença material é condição de possibilidade para o símbolo, mas não é símbolo por si só. Proteger esta distinção é preservar a especificidade do gesto simbólico sem dissolver a materialidade que o torna possível.
"A marca é apenas matéria distinta,
o símbolo é a matéria que aprendeu a reinscrever-se."
—— David Cota — Fundador da Ontologia da Complexidade Emergente ——