O Real Sem Testemunha
Afirmar que o real existe sem testemunha é recusar, de forma categórica, qualquer dependência ontológica entre o ser e a sua inscrição simbólica. O mundo não começa quando é visto, nomeado ou pensado. A matéria — nos seus fluxos, condensações e transformações — não aguarda reconhecimento para operar. Uma erupção vulcânica, a fusão de núcleos no interior de uma estrela distante, a lenta deriva de uma placa tectónica: tudo isto acontece independentemente de qualquer observador, sistema de registo ou linguagem capaz de traduzi-lo. O real, aqui, não é correlato da experiência nem produto da relação; é um campo material autossuficiente, que se transforma segundo as suas próprias dinâmicas internas.
Nesta perspetiva, a ausência de perceção não é ausência de existência. O que não é visto não é por isso menos real. A Ontologia da Complexidade Emergente (OCE) rompe com a herança fenomenológica e idealista que, de Berkeley a Husserl, fez depender a consistência do real da sua presença a uma consciência. Existir é manter presença material no mundo, independentemente de qualquer inscrição, interpretação ou registo. Reconhecer é converter essa presença em elemento legível dentro de um sistema simbólico — linguístico, matemático, visual ou técnico. A confusão entre estes dois planos está na base de teorias que subordinam o ser à consciência ou à relação.
Na existência, não há necessidade de audiência: uma partícula subatómica interage, um planeta orbita, um campo eletromagnético propaga-se, quer alguém os perceba ou não. No reconhecimento, há sempre uma mediação: a presença material é transformada num signo, indexada a um código, situada numa rede de significados. A tradição idealista e a fenomenologia clássica colapsaram esses dois planos, tratando o que não é reconhecido como inexistente ou, no mínimo, como ontologicamente irrelevante. A OCE separa-os de forma categórica: o reconhecimento pode reconfigurar o modo como algo é integrado na experiência e na ação, mas não é condição da sua ocorrência. O que existe pode permanecer ignorado; e, mesmo ignorado, continuar a transformar-se.
Esta afirmação não se sustenta apenas como princípio abstrato; ela pode ser situada na materialidade concreta dos processos que, desde muito antes da existência de qualquer observador, se desenrolam no universo. A própria cosmologia física oferece um quadro eloquente: a nucleossíntese primordial ocorreu cerca de três minutos após o início da expansão cósmica, muito antes da formação das primeiras estrelas ou da possibilidade de qualquer vida. Nenhum olhar testemunhou a fusão dos primeiros núcleos de hidrogénio e hélio; ainda assim, essa transformação determinou a composição elementar do cosmos. O mesmo se pode dizer da lenta agregação de poeira interestelar em corpos planetários ou da evolução de sistemas binários estelares — dinâmicas inteiramente independentes de qualquer codificação simbólica.
Na geologia, a deriva continental de Wegener, hoje confirmada pela tectónica de placas, prosseguiu durante centenas de milhões de anos sem a intervenção de qualquer ser dotado de linguagem. Montanhas ergueram-se e foram erodidas; oceanos abriram-se e fecharam-se; ecossistemas surgiram e desapareceram sem que houvesse um único registo ou consciência do acontecimento. Estes processos não apenas existiram sem testemunha: operaram segundo regras materiais próprias, indiferentes à eventual chegada de uma mente capaz de simbolizá-los.
A biologia acrescenta exemplos igualmente decisivos. Muito antes de qualquer vida complexa, reações químicas auto-organizadas em mares primordiais geraram cadeias moleculares capazes de replicação rudimentar. A emergência dessas estruturas não dependeu de que fossem identificadas como “vida” ou como “processo genético”. A sua continuidade e transformação bastaram-se com as condições físico-químicas presentes.
Historicamente, a filosofia oscilou diante desta independência ontológica. O idealismo berkeleyano (“esse est percipi”) negou que algo pudesse existir sem ser percebido, enquanto o empirismo clássico manteve a crença de que conhecer era, em última instância, captar uma realidade já dada — ainda que só validada pela experiência sensível. O realismo científico contemporâneo, por seu turno, recupera em parte a tese de que o real excede o campo da experiência, mas frequentemente sem questionar o papel central da observação como legitimadora. A posição da OCE desloca esse eixo: a observação não é condição ontológica, é apenas uma das formas, tardia e contingente, pelas quais o real pode inscrever-se num regime simbólico.
Na fenomenologia husserliana, o ser das coisas é sempre o correlato intencional de uma consciência — não há “coisa em si” fora da relação de constituição fenomenológica. Heidegger, mesmo deslocando o centro da análise para a questão do Ser, mantém o mundo enquanto horizonte de sentido aberto pelo Dasein: sem a clareira da presença humana, o ser não se manifestaria. Essa herança, partilhada de modos diferentes por correntes neokantianas e pelo correlacionismo contemporâneo, preserva um núcleo comum: o real e a experiência são coextensivos.
A OCE recusa esse núcleo. Se o real é campo material autossuficiente, a sua existência não requer horizonte de manifestação nem estrutura de constituição. A inscrição simbólica, longe de ser condição transcendental do ser, é um evento localizado que ocorre numa pequena fração da matéria organizada. Deste ponto de vista, a fenomenologia incorre num equívoco de escala: toma um fenómeno local — a consciência reflexiva humana — como chave ontológica universal. A OCE inverte a relação: o simbólico é exceção operatória, e o mundo não só pode como inevitavelmente existe e transforma-se sem qualquer necessidade de ser inscrito.
Esta crítica não é um regresso a um realismo ingênuo que ignore a mediação do conhecimento. É, antes, um reposicionamento da análise: o real antecede, excede e sobrevive a toda inscrição. A filosofia, ao subordinar o ser à experiência, criou um círculo fechado que exclui vastas zonas do existente. A tarefa ontológica é romper esse círculo e devolver ao real a sua independência estrutural.
Dizer que o real não depende de observador não implica que a filosofia, a ciência ou a arte possam dispensar o trabalho de inscrição e interpretação. Pelo contrário, a inteligibilidade requer uma prática de tradução simbólica que transforma o real em algo legível para um determinado regime cognitivo. A diferença é que esta prática, por mais elaborada que seja, não cria o objeto a que se refere; apenas o reinscreve num sistema de significados.
A OCE sublinha que ausência de testemunha não significa ausência de inscrição possível. Um evento não observado — por exemplo, a colisão de duas galáxias numa região remota do universo — permanece aberto à possibilidade de ser inscrito no futuro, caso se crie uma cadeia material capaz de o captar, processar e simbolizar. Essa possibilidade, porém, não retroage sobre a existência: o evento deu-se sem esperar pela sua legibilidade.
Assim, evita-se tanto o correlacionismo, que prende o real à consciência, como o realismo simplista, que toma o ser como dado absoluto e autoevidente. Entre ambos, a OCE mantém a distinção rigorosa: o real não precisa de ser conhecido para existir, mas conhecer é sempre um gesto simbólico situado que reorganiza a forma como esse real pode interagir com outros sistemas.
A inteligibilidade — seja científica, filosófica ou artística — exige a mediação de sistemas simbólicos que recortam, estabilizam e articulam aspetos do real para torná-los legíveis. O que está em causa não é negar essa necessidade, mas impedir que ela seja confundida com condição de existência.
O real sem testemunha não é ausência nem vazio: é excesso de ocorrência, multiplicidade de processos que não aguardam nome. Reconhecer isso não fecha a investigação — abre-a a um campo mais vasto, onde o pensamento é obrigado a interrogar o que se dá antes ou fora da sua própria capacidade de registo. É nesse espaço de anterioridade e de latência que se inscreve o próximo desafio, não como sequência necessária, mas como nova possibilidade de reorganização simbólica.
"O mundo não começa quando o vemos
começa sem nós e continua apesar de nós."
—— David Cota — Fundador da Ontologia da Complexidade Emergente ——