A Origem é Aquilo que se Torna Origem

Quando falamos de origem, quase sempre imaginamos um ponto. Um instante inaugural, uma cena primitiva, uma explosão ou um começo. Mas aqui, não estamos a falar do início de uma narrativa, de uma cultura, de uma história ou de um organismo. O que está em causa é a origem do universo — a emergência do real enquanto tal, antes de haver tempo, medida, linguagem ou observador.

E o que esta origem mostra, ou melhor, o que ela recusa mostrar, é que nenhuma emergência absoluta se dá como origem no momento em que ocorre. Não há instante inaugural que se reconheça como o início de tudo. O que emerge não se nomeia; apenas se faz. Quando uma reorganização acontece, ela não se oferece ao pensamento como origem, mas como insistência operatória, como continuidade instável que ainda não adquiriu forma. O nascimento do real não tem data, nem marca, nem ponto. É apenas matéria que, ao reorganizar-se, atravessa um limiar de consistência. Só muito depois, quando a estabilidade permite o olhar simbólico, é que aquilo que não começou é declarado como “início”.

Toda origem é retrospetiva. Só quando algo persiste é que o pensamento recua para tentar encontrar onde terá começado. Mas esse “onde” não é encontrado — é construído. É nomeado a partir de um sistema já constituído que precisa de um ponto de partida para organizar a sua própria coerência. A origem não está no princípio; está no meio. Está no momento em que um corpo já formado precisa de explicar a sua própria forma. Não se trata de falsidade — trata-se de função simbólica. Não dizemos “começou ali” porque foi ali que começou, mas porque é ali que a nossa narrativa pode começar a operar.

O que chamamos origem não é um dado do real, mas um gesto de inscrição sobre ele. É uma imposição de limite a um campo que não tem margens. É o modo como o pensamento traça uma linha retrospetiva para fixar o que já passou, o que já não pode ser repetido, o que se tornou irrepresentável pela própria dispersão do tempo. A origem é sempre uma redução — uma forma de tornar o excesso narrável, o indizível legível, o contingente tolerável. Nomear uma origem é sempre silenciar o que não se deixou inscrever. É escolher um marco e esquecer tudo o que ficou fora dele.

Não há neutralidade neste gesto. Nomear uma origem é também fundar uma autoridade: dizer o que conta como princípio, o que será lembrado, o que terá valor. Toda origem é uma exclusão disfarçada de começo. É uma seleção operatória que legitima o que vem depois. Não há início inocente. Todo ponto de partida é já uma estratégia de estabilização. Por isso, quando dizemos “foi ali que tudo começou”, estamos a operar uma forma de domesticação: retemos um segmento do real para poder operar sobre ele, mas deixamos fora tudo o que não cabe na linha narrativa que traçámos.

O pensamento filosófico, ao longo da sua história, raramente questionou este gesto. Mesmo quando rompe com os fundamentos clássicos, tende a manter a figura da origem como algo a ser desvelado, descoberto, compreendido. Mas não há origem a descobrir. Há apenas reorganizações que se tornam estáveis o suficiente para permitir a inscrição de uma origem. A origem não é algo que antecede — é algo que se institui. Não é aquilo que está antes, mas aquilo que é feito depois, como condição simbólica de inteligibilidade. A origem, afinal, é sempre posterior.

É essa posterioridade que a Ontologia da Complexidade Emergente insiste em tornar visível. Não para negar a emergência, mas para recusar que ela seja interpretada como ponto fixo, como dado inaugural, como essência fundadora. A emergência é real — mas a origem é uma operação simbólica sobre ela. Quando a matéria se reorganiza e essa reorganização se mantém, o pensamento olha para trás e diz: “aqui começou”. Mas o que começou ali não foi a matéria, nem o real — foi a possibilidade de dizer que ali estava um começo. A origem não funda o real. O que ela funda é a narrativa.

Por isso, não há origem no sentido em que se procura um início absoluto. Há apenas zonas de maior consistência, zonas onde a variação se reteve, onde a forma se estabilizou o suficiente para se tornar legível. É aí que se inscreve a origem — não porque foi aí que tudo começou, mas porque é aí que se tornou possível pensar um começo. A origem é sempre o nome que se dá àquilo que resistiu ao desaparecimento. A inscrição não representa um começo — ela opera uma distinção. O que persiste, inscreve-se. E essa inscrição retroativa é o que chamamos origem.

Nunca nomeamos o que passou, mas o que ficou. A origem não é a marca do começo, mas o traço de uma persistência. É sempre a sobrevida simbólica daquilo que, por um instante, resistiu à dispersão.


"A origem nunca foi ali.
Foi ali que aprendemos a dizer que tudo tinha começado."


—— David Cota — Fundador da Ontologia da Complexidade Emergente ——