Nada Precede a Emergência

Não há, na história da filosofia ocidental, qualquer sistema que tenha verdadeiramente pensado a origem como acontecimento sem precedência. Toda emergência foi interpretada como consequência, como transição ou como resposta. Mesmo as correntes mais críticas conservaram a estrutura da sucessão: algo vem depois de algo, algo irrompe porque algo se rompeu, algo começa porque algo faltou. A origem, nesse regime, não é nunca um gesto inaugural — é sempre um efeito retroativo, uma inscrição sobre o já dado.

O problema não é apenas de linguagem — é de estrutura do pensamento. A filosofia, ao tentar escapar da criação teológica, recaiu num modelo lógico que exige condição. Se algo emerge, deve haver um princípio que o permita; se algo se transforma, deve haver um antes que o configure. Da arqué grega ao traço derridiano, passando pelo motor imóvel, pela razão suficiente ou pela negatividade dialética, o que se mantém é a compulsão em pensar o começo como derivação. Ninguém pensou a emergência como aquilo que não vem de nada — mas que também não sucede a nada.

Na filosofia clássica, a origem é quase sempre substância ou potência. Em Anaximandro, o apeiron — o ilimitado — antecede tudo como matriz de geração e dissolução. Em Heraclito, o conflito gera a unidade. Em Platão, o mundo sensível deriva de um mundo ideal preexistente. E mesmo quando Aristóteles tenta secularizar o princípio, concebe um motor imóvel, causa de todo o movimento, que não é movido por nada. Em todos estes casos, a origem funda: é anterior, necessária e superior. A emergência não é pensada como acontecimento, mas como consequência ordenada de um princípio já dado.

A modernidade, que parecia prometer uma rutura, manteve a estrutura. Descartes busca o fundamento absoluto do pensamento na transparência do sujeito. Leibniz formula o princípio da razão suficiente: nada existe sem que haja uma razão para tal. Kant, mesmo recusando a metafísica do absoluto, ancora o conhecimento em formas a priori — categorias anteriores à experiência que a tornam possível. A origem continua a ser pensada como condição: um plano anterior que organiza e permite. A emergência não é um facto ontológico, mas um resultado derivado de leis, estruturas, condições.

Mesmo Hegel, que rompe com a ideia de estabilidade inicial, funda o pensamento do vir-a-ser numa negatividade originária. A origem, aqui, é o conflito que se supera, a cisão que se resolve, o processo dialético que reconcilia. Mas continua a haver um antes: a tese, a ausência de forma, a indeterminação inicial que exige superação. A emergência é produto do que falta, nunca gesto de afirmação sem antecedente.

No século XX, surgem tentativas de deslocamento — mas nenhuma abandona o modelo da precedência. Freud vê no trauma, na perda e na repressão os motores da formação psíquica. Heidegger inscreve o ser na temporalidade do esquecimento: o que há é sempre o que se perdeu. Derrida desconstrói a presença, mas funda toda inscrição na ausência e na différance. Nancy pensa o ser como sentido partilhado e sempre já dissipado. Foucault analisa os acontecimentos sem sujeito, mas como efeitos de sistemas históricos. Mesmo quando criticam a origem, essas correntes mantêm uma economia de anterioridade — agora negativa, deslocada, dispersa, mas ainda operante.

Todas estas tentativas falham no essencial: nenhuma concebe a emergência como aquilo que não vem depois de nada. Nenhuma aceita que o que começa não sucede — apenas irrompe. Mesmo a crítica radical permanece aprisionada no horizonte de uma origem perdida, de uma estrutura anterior, de um negativo fundante. A emergência continua a ser resposta, desvio, síntese, falha, adiamento, falta — mas nunca dobra operatória sem causa.

A filosofia ocidental não soube pensar o acontecimento como origem. Construiu arquiteturas sublimes da totalidade, do vir-a-ser, da inscrição e da perda — mas sempre a partir de algo. De uma substância, de uma falta, de uma tensão. Mesmo as tentativas de escapar à cronologia acabaram por reinscrevê-la sob outras formas: lógica, sintomática, narrativa. A emergência sem antes permanece impensada. Não porque falte linguagem — mas porque a própria estrutura do pensamento permaneceu prisioneira da exigência de precedência.

Não se trata, aqui, de recusar a tradição. Trata-se de reconhecer que nenhuma das suas formas conceptuais conseguiu romper com a imaginação do início como sucessão ou rutura. Nenhuma pensou o que começa como aquilo que não sucede. A origem foi sempre justificada, pressuposta, simbolizada como retorno ou como corte. Nunca escutada como gesto que não repete, que não repara, que não sucede.

Por isso, o pensamento ainda não começou a pensar o que emerge e toda filosofia da origem permanece, até hoje, prisioneira do que a precede.


"A origem não sucede, ela irrompe.
A emergência não começa, ela insiste."


—— David Cota — Fundador da Ontologia da Complexidade Emergente ——