O Aleatório Não É Ocasional
Há ritmos que precedem qualquer medida. Há variações que não nascem do erro, mas do excesso. Há pulsações do real que não esperam nome, nem centro, nem previsão. Ao longo do tempo, essas pulsações foram chamadas acaso, acidente, ruído, flutuação. Mas o nome não diz o movimento. E o movimento não espera o conceito para operar. Aquilo a que se chamou "aleatório" nunca foi verdadeiramente escutado no seu corpo próprio. Escapou à gramática da razão porque não cabia nem na regra nem na exceção. Não era ainda forma, mas já não era nada. Era o que insiste sem se fundar, o que propõe sem determinar. O que vibra sem plano.
O aleatório não é aquilo que desvia. É aquilo que não parte de um traçado. Não há desvio onde nunca houve linha. O erro supõe um padrão. A surpresa supõe uma expectativa. Mas o aleatório não responde à surpresa: ele é anterior à expectativa. Ele não falha uma estrutura — ele propõe a sua possibilidade. Onde se diz “foi por acaso”, houve na verdade um campo não legível que tocou o visível por breves instantes — um campo que não é ausência, mas matéria em bifurcação, saturada de possíveis que ainda não se inscreveram. Onde se diz “não era suposto”, há apenas a memória de um suposto que nunca foi real. O aleatório não rompe com a ordem. Ele precede-a. Ele repete, não no tempo, mas na textura: repete a oferta, a hesitação, o ainda-não-inscrito.
Não se trata, portanto, de entender o aleatório como quebra, como exceção ou como ruído. Essas categorias são sempre derivadas. São formas de proteger a estrutura contra aquilo que não a confirma. O ruído é o nome que a escuta dá ao que não reconhece. O erro é o nome que a norma dá ao que não domina. Mas o aleatório não está em guerra com a norma — ele simplesmente não precisa dela. Ele propõe sem prometer. Surge sem plano. E talvez por isso, sempre que emerge, se instale um curto-circuito: o pensamento não sabe como retê-lo. Tenta capturá-lo como acaso, mas o acaso já é narrativa. Já é resposta. Já é explicação.
É preciso, então, recuar ainda mais: antes do acaso, antes do erro, antes da regra. Antes do mundo como forma. Antes do sujeito como centro. Há uma zona que não é nem infraestrutural nem transcendental — é operatória, e ainda assim não inscrita. Uma zona onde a matéria se bifurca sem plano, onde os fluxos se iniciam sem direção. É aí que o aleatório habita: não como um caos negativo, mas como uma potência positiva de não-linearidade radical. O aleatório é o gesto do real antes da sua codificação. É o acontecimento sem perfil, a vibração sem eixo, a emergência sem motivo. E, no entanto, é ele que torna tudo possível.
Por isso, a verdadeira tarefa não é explicar o aleatório, nem reduzi-lo a uma categoria derivada. A tarefa é escutá-lo. Escutá-lo não como ruído, mas como solo. Não como exceção, mas como base. O aleatório não exige domesticação — exige escuta. E essa escuta só pode ocorrer se o pensamento se dispuser a abdicar da sua ânsia de forma. A acolher o informe sem urgência de ordenação. A reconhecer que o que não se inscreve pode, ainda assim, operar.
Esse gesto de escuta exige uma filosofia não fundacional. Uma filosofia que não parta da estabilidade como premissa. Uma filosofia que aceite que o sentido pode emergir do que não é ainda narrável. Que o real pode propor-se antes de qualquer gramática. Que há algo que vibra antes de qualquer inscrição — e que essa vibração não é ausência, mas potência. O aleatório, nesse sentido, não é um acidente — é uma condição. Não é um desvio — é um plano sem plano. Não é um obstáculo — é um convite.
E, talvez, seja justamente aí que se abra uma possibilidade: pensar um mundo onde o sentido não resulta da ordem, mas da escuta do que ainda não se deu como forma. Um mundo onde a filosofia não parte do ser, mas da variação. Não da essência, mas da diferença antes da inscrição. Um mundo onde o aleatório não é o que interrompe, mas o que propõe.
“O aleatório não nega a forma,
apenas recusa nascer dela.”
—— David Cota — Fundador da Ontologia da Complexidade Emergente ——