Instabilidade Como Condição
Desde os seus primórdios, a filosofia ocidental tem empreendido um esforço contínuo para salvaguardar o mundo da instabilidade. Aquilo que hoje designamos por "caos" foi quase sempre concebido não como uma condição ontológica intrínseca e operatória, mas sim como uma mera transição, uma falha, uma ameaça a ser contida, ou um recurso funcional a ser domesticado. Esta persistente surdez ontológica à instabilidade constitui o fio condutor de uma genealogia que se estende das cosmogonias arcaicas às mais recentes tentativas de pensamento.
A narrativa fundadora da filosofia ocidental, enraizada na Grécia Antiga, revela uma profunda aversão à instabilidade como princípio. Em Hesíodo, na sua Teogonia, o Khaos emerge como o nome primordial da origem. Contudo, esta entidade não denota uma presença operatória, uma potência ativa; antes, configura um intervalo, um hiato, um vazio indefinido entre Terra (Gaia) e Céu (Urano). Longe de ser uma força geradora, o Khaos é concebido como uma carência, uma ausência que urge ser preenchida. A genealogia do mundo inicia-se, mas o informe é rapidamente relegado ao esquecimento, suplantado pela emergência da ordem.
Platão, no Timeu, aprofunda este gesto de exclusão através de uma distinção radical entre o mundo sensível e o mundo inteligível. A génese do sensível é mediada por um terceiro termo: a chôra – um recetáculo do devir, uma matriz da geração. No entanto, mesmo a chôra carece de consistência própria; é um espaço passivo, destinado a ser moldado, nunca uma potência autónoma. O cosmos platónico não emerge de uma auto-organização intrínseca da instabilidade, mas sim da imposição de proporção por um demiurgo externo e racional. O caos, neste contexto, não é um regime; é uma matéria-prima inerte, aguardando a sua domesticação pela forma.
Aristóteles, por sua vez, consolida esta exclusão. Na sua Física, estabelece que toda a mudança se orienta para um fim, para a realização da forma imanente a cada ente. A physis é concebida como o movimento intrínseco em direção ao telos. A instabilidade, portanto, só pode ser um desvio temporário, um estado imperfeito no caminho para a plena realização. Mesmo o acaso (to automaton) é interpretado como aquilo que ocorre fora da finalidade natural, mas que, ainda assim, não escapa ao quadro geral do movimento racional. O universo aristotélico é explicado por quatro causas, e nenhuma delas contempla um regime que emerja sem finalidade, sem sujeito, sem essência. A instabilidade é, assim, subsumida pela teleologia.
Em poucos séculos, o pensamento grego ergueu os pilares de uma lógica que perduraria por milénios, ditando que:
A origem não pode ser instável.
O real não pode nascer do informe.
Aquilo que carece de centro deve ser superado.
Mesmo Heraclito, frequentemente evocado como o pensador da mudança e do fluxo, subordina o conflito a um logos universal. “Pólemos é pai de todas as coisas”, afirma. Contudo, o pólemos não constitui um regime instável e desorientado; é, antes, um princípio generativo cuja tensão é justificada por uma harmonia superior. O fluxo universal está submetido a uma razão cósmica, uma razão que não tolera o excesso sem contenção. A instabilidade, na sua essência, nunca foi verdadeiramente pensada; foi neutralizada, absorvida, justificada ou, simplesmente, rejeitada. Não lhe foi concedido o direito de existir por si mesma, mas apenas como um intervalo transitório antes da instauração do cosmos. A filosofia grega, em suma, não escutou o caos; desviou-o, transformando-o numa forma racionalizada de ordem.
Na transição para a modernidade, a instabilidade metamorfoseia-se de um vazio metafísico para um desvio funcionalmente necessário, embora sempre sob estrita vigilância. Já em Lucrécio, no De Rerum Natura, o clinamen – esse desvio mínimo e imprevisível dos átomos que permite a sua colisão e a consequente formação do mundo – é introduzido não como uma manifestação de instabilidade autónoma, mas como um recurso explicativo. A sua função é claramente finalista: libertar a natureza do determinismo absoluto e viabilizar a emergência do mundo e da liberdade. O desvio é tolerado porque prepara a forma, porque possibilita a organização. Nunca é reconhecido como um regime ontológico independente.
A modernidade mecanicista, com Descartes à frente, reforça este gesto de contenção. O mundo físico é inteiramente redutível a extensão e movimento, e, portanto, à previsibilidade matemática. O caos, neste paradigma, é impensável; tudo decorre de leis claras, racionais e geométricas. Isaac Newton consolida esta arquitetura: o universo é uma máquina perfeitamente regulada por forças universais, onde qualquer instabilidade aparente é meramente um efeito da nossa ignorância local. O real é previsível; o desvio é um erro de cálculo, não uma potência intrínseca do real. A instabilidade é, neste modelo, expulsa do cosmos enquanto princípio.
Gottfried Wilhelm Leibniz concebe o mundo como o melhor dos mundos possíveis: uma estrutura infinitamente racional onde até o acaso encontra o seu lugar, mas sempre regido por uma harmonia pré-estabelecida. Nada emerge do imprevisível. O possível é uma variante da ordem, e a ordem é a condição sine qua non de toda a realidade.
A viragem crítica de Immanuel Kant, embora aparentemente abrindo espaço para o incalculável – sobretudo na experiência do sublime, do ilimitado –, não afirma a instabilidade. Pelo contrário, domestica-a através da razão prática. O caos, seja como ameaça natural ou como limite do entendimento, serve para confirmar a necessidade da estrutura a priori do sujeito. A instabilidade, em Kant, autoriza o transcendental, mas falha em pensar o "fora", o que transcende a própria razão.
Com Georg Wilhelm Friedrich Hegel, esta racionalização atinge o seu apogeu. A negatividade é finalmente integrada, mas apenas enquanto momento dialético da auto-superação do espírito. O devir, a contradição, o colapso: tudo é permitido, mas tudo é, em última instância, reconciliado. A instabilidade é necessária, mas apenas para que a razão se realize como absoluto. O negativo nunca é uma condição persistente; é uma etapa de superação. O caos, se admitido, é apenas o "outro" da ordem, e nunca o seu regime íntimo.
Assim, entre Lucrécio e Hegel, a filosofia ocidental orquestra uma sofisticada estratégia: não rejeita frontalmente a instabilidade, mas incorpora-a como um recurso funcional, subordinado à liberdade, à ordem, à razão ou à totalidade. Aquilo que é instável só é aceitável se estiver em trânsito para alguma forma – seja ela física, moral ou dialética.
Nas filosofias do século XX que se insurgiram contra os sistemas totalizantes da modernidade – notavelmente no pós-estruturalismo francês – a instabilidade deixa de ser recusada e passa a ser celebrada. Contudo, esta celebração, em muitos casos, converte-se numa nova forma de captura. Já não se trata de integrá-la numa estrutura racional, como em Hegel, mas de a transformar num princípio estético, simbólico ou desejante, desprovido de uma reinscrição material.
Gilles Deleuze e Félix Guattari são, talvez, os mais influentes formuladores desta viragem. Em Anti-Édipo e Mil Platôs, propõem uma ontologia rizomática do real: não há centro, não há origem, não há plano. O que existe são linhas de fuga, desterritorializações, movimentos nómadas, regimes de fluxo que se cruzam, interrompem e bifurcam. O mundo não é cosmos; é caosmos. No entanto, este caosmos, longe de designar um regime operatório da matéria, é frequentemente apresentado como um campo intensivo de desejo, um espaço de variação contínua, um plano de consistência múltipla. A instabilidade torna-se fluxo libidinal, superfície vibrátil, multiplicidade não hierárquica – mas dificilmente como um regime físico de emergência material.
Em Jean Baudrillard, a instabilidade assume um rosto distinto: o da simulação em espiral. A aceleração dos signos, o colapso da referência, a implosão da realidade são formas de instabilidade radical, mas já não material. O caos, aqui, é hiperreal, um efeito do excesso simbólico, da saturação informacional. A desordem já não é física; é mediática. Consequentemente, mais do que pensar a emergência, esta instabilidade aniquila o próprio regime da inscrição. É o fim da forma, não a sua mutação.
Jean-François Lyotard discorre sobre o colapso dos grandes relatos e a multiplicidade dos jogos de linguagem. A instabilidade, neste contexto, é epistemológica e política: não há mais unidade narrativa, nem totalidade. Contudo, esta fragmentação, apesar de crítica, raramente é reinscrita como um regime ontológico positivo da matéria. O pensamento dissolve-se na multiplicidade sem ancoragem, sem questionar de que corpo essas vozes emergem.
Mesmo nas ciências da complexidade, a instabilidade começa a ser reconhecida como produtiva, mas sem que isso gere uma verdadeira reinscrição filosófica. Ilya Prigogine, por exemplo, demonstra que sistemas longe do equilíbrio podem gerar ordem espontânea – as chamadas estruturas dissipativas. A instabilidade, neste quadro, não destrói o sistema; reorganiza-o. Contudo, o discurso filosófico permanece, em grande medida, alheio a esta reformulação. A ciência aponta o caminho, mas a filosofia não o escutou. O salto entre a instabilidade física e a inscrição simbólica não se concretiza.
Assim, se na tradição clássica a instabilidade era negada, na tradição contemporânea ela é celebrada, mas sem corpo, sem regime, sem consequência real. O caos transforma-se em fluxo, colapso, performance. Mas não há reorganização material. Não há uma escuta da instabilidade como condição operatória. Há deslizamento, há velocidade, há implosão – mas não há um gesto ontológico que a reconheça como fundamento.
Ao longo de todo este percurso, da cosmogonia arcaica às vanguardas do século XX, a instabilidade foi sistematicamente detida antes de poder tornar-se princípio. Seja nomeada como khaos, clinamen, acaso, negatividade, fluxo ou colapso, nunca foi reconhecida como um regime ontológico autónomo. Foi suporte de organização, transição para a forma, intervalo da harmonia ou estética da dissolução – mas nunca um regime de sustentação do real.
Não se trata apenas de uma questão de nome ou de imagem; é uma questão de escuta ontológica. A filosofia ocidental, mesmo nas suas vertentes mais críticas, não reconheceu a instabilidade como corpo operatório. O instável foi convertido em signo (na pós-modernidade) ou subordinado à teleologia (na tradição clássica). Em nenhum caso foi reconhecido como uma condição permanente de emergência, como uma base sem fundamento, como um campo fértil sem plano.
Esta “surdez ao instável” não é neutra. Ao recusar a instabilidade como estrutura, o pensamento herdado reforçou a ilusão da ordem como essência – e, com ela, a ideia de que tudo o que existe deve obedecer a uma finalidade, a uma lógica, a uma forma prevista. A origem, assim, foi sempre um equívoco: ou foi projetada como ponto, ou como substância, ou como ideia reguladora. Mas nunca foi reconhecida como um acontecimento sem autor, sem centro, sem garantia.
Este texto detém-se aqui. Não propõe ainda uma nova fundação, nem antecipa o que poderá ser um pensamento da instabilidade afirmativa. Limita-se a cumprir o gesto necessário: desobstruir o campo. Mostrar que o pensamento não falhou por acidente, mas por estrutura – porque foi incapaz de pensar o que não se submete, o que não se resolve, o que não se ordena. A instabilidade, se quiser ser pensada, terá de ser escutada de outro modo. Esse gesto será o passo seguinte.
"Mas o que sempre houve — nunca foi ausência.
Foi o que o pensamento recusou escutar."
—— David Cota — Fundador da Ontologia da Complexidade Emergente ——