A Duração Sem Referência
O universo não começa com a ordem. Começa com uma duração que ainda não sabe que existe. Já não estamos na singularidade. Já não estamos no tempo que não podia ser nomeado. Avançámos — ligeiramente, quase impercetivelmente — para uma região do real onde a matéria começa a insistir em permanecer. O universo expande-se, arrefece, desacelera. E essa desaceleração não é ausência: é a condição mínima da primeira persistência.
Já não é o colapso sem forma. Agora, certas combinações não se desfazem imediatamente. Partículas elementares — quarks, eletrões, neutrinos — deixam de ser instabilidade pura e começam a constituir núcleos breves, frágeis, mas duráveis o suficiente para que outra coisa se torne possível. Não há linguagem. Não há forma simbólica. Mas há processos que já não se apagam no instante seguinte.
Essa duração não é o tempo humano. Não há marco, nem sujeito, nem contagem. Mas há relação. Relação sem estabilidade formal, sem inscrição simbólica, mas já com organização interna mínima. Os primeiros núcleos leves formam-se — hidrogénio, hélio. O universo continua a expandir-se e a arrefecer, mas já carrega uma memória material não reflexiva: certos padrões repetem-se, certas configurações persistem.
É uma memória material sem inscrição: não retém, não representa, não projeta. Mas repete, insiste, sustenta — como se a matéria começasse a recordar sem linguagem.
Ainda não há luz visível. Os fotões colidem incessantemente com a matéria. Mas prepara-se, lentamente, a época da desacoplagem — o momento em que a matéria permitirá à luz desprender-se e seguir livre. Esse momento não é instantâneo, nem sequer evidente. Mas existe como possibilidade crescente, inscrita na própria duração do real.
Pensar este estágio é pensar o tempo como tecido de reorganizações materiais, sem centro, sem forma, mas já não indiferente. Já não é a pura instabilidade do início. É um real que começa a manter-se, a manter certas condições que se repetem sem se fixarem completamente. Não há relógio — mas há memória difusa, não inscrita, que permite que a matéria deixe, pela primeira vez, de se dissipar sem vestígio.
Essa duração não está à espera de um observador. Ela é o observador cego de si mesma. Não se representa. Não se narra. Mas sustém o universo em expansão como campo operatório de diferenciação lenta e anónima. O tempo ainda não entrou no símbolo — mas a matéria já começa a experimentar a diferença entre persistir e desaparecer.
Quando falamos de tempo, falamos muitas vezes de medida, de ciclo, de retorno. Aqui, não há retorno. O que há é uma travessia irreversível da instabilidade para a pré-forma — essa zona em que a matéria ainda não assume figura, mas já preserva relações internas que resistem à dissolução imediata.
Mais tarde, formar-se-ão os primeiros átomos neutros. Em seguida, condensam-se nuvens difusas. Só muito depois, surgem as primeiras galáxias. Mas aqui — onde ainda não há figura nem marca nem nome — algo já se sustém. Algo já dura com consistência material mínima. Isso basta para que o pensamento se instale. Não para medir, mas para reconhecer que o mundo começou por não deixar de ser.
"O mundo não começou a ser.
Começou por não deixar de durar."
—— David Cota — Fundador da Ontologia da Complexidade Emergente ——