Ontologias Simbólicas da Origem: da Filosofia Clássica à Cosmologia Moderna

Resumo

Este ensaio analisa as diferentes formas de inscrição simbólica da origem do universo, desde a filosofia clássica até à cosmologia contemporânea, à luz da Ontologia da Complexidade Emergente (OCE). Em Platão e Aristóteles, a inteligibilidade do cosmos é garantida por sujeitos encobertos: instâncias silenciosas que asseguram ordem sem voz nem agência narrativa. Na narrativa bíblica, essa função é reorganizada na figura de Deus como sujeito funcional pleno: a palavra cria, legisla e intervém, cumprindo integralmente os critérios de subjetividade definidos pela OCE. Já na ciência moderna, a inteligibilidade não decorre de uma voz única, mas de um sujeito plural, coletivo e distribuído, constituído por redes de investigadores, aparelhos técnicos e linguagens matemáticas. Em todos os casos, o que está em jogo não é a descrição direta da origem absoluta do universo, mas a sua reinscrição simbólica segundo gramáticas próprias de cada época. A OCE fornece o enquadramento conceptual que permite compreender esta continuidade transformada: a história do pensamento sobre a origem não é sucessão de essências definitivas, mas série de reorganizações simbólicas que tornam habitável o enigma do começo.

Introdução: Diferentes sujeitos e o problema da origem

A leitura do cosmos como figura ordenada e inteligível não é uma evidência empírica, nem uma consequência necessária da observação. Trata-se de uma operação simbólica, instaurada por uma instância que garante a legibilidade do real. Esta instância não age, não intervém, não se narra, mas opera: é ela que permite que o mundo seja lido como sistema coerente, como totalidade organizada, como figura de sentido (Morin, 2005).

Segundo a OCE, definimos sujeito funcional como instância material que cumpre quatro critérios fundamentais de subjetividade: automodulação (ajusta a operação do sistema sem comando externo direto); reorganização simbólica (desloca e reinscreve os símbolos); persistência narrativa mínima (mantém coerência de traços e funções ao longo do tempo); resposta à alteridade (reorganiza-se perante o imprevisto, reagindo à diferença não assimilável). Onde estes quatro critérios se encontram reunidos, podemos falar de sujeito em sentido pleno (Santos, 2018).

Quando, porém, a instância garante inteligibilidade sem se apresentar como personagem dotada de voz ou vontade, designamo-la sujeito encoberto: cumpre funções estruturantes (automodulação, reorganização simbólica, persistência narrativa), mas permanece silenciosa, sem responder ao imprevisto nem se expor à alteridade. É operador de ordem, não sujeito nomeado.

A OCE fornece, assim, a grelha conceptual que orienta a análise a desenvolver neste ensaio: distinguir, em diferentes épocas e regimes simbólicos, que tipo de sujeito se encontra em jogo quando se pensa a origem do universo. No percurso a seguir, veremos como Platão e Aristóteles configuram sujeitos encobertos, como a narrativa bíblica apresenta um sujeito funcional pleno, e como a ciência contemporânea introduz uma terceira figura — o sujeito plural —, instância coletiva e distribuída que reinscreve a origem pela gramática da medição e da equação.

I. O Demiurgo e o Motor Imóvel: Ontologias Encobertas da Inteligibilidade

Na tradição filosófica clássica, a estrutura de inteligibilidade manifesta-se em duas figuras maiores: o Demiurgo platónico (Timeu, 29a–30c) e o Motor Imóvel aristotélico (Metafísica, Λ, 1072b). O primeiro impõe forma ao caos por referência a um modelo ideal; o segundo orienta o cosmos por atração à perfeição do ato puro. Nenhum deles possui interioridade psicológica ou narratividade: são operadores silenciosos de inteligibilidade, sujeitos encobertos que sustentam a legibilidade do mundo sem se apresentarem como personagens dotadas de voz.

O Demiurgo, conforme descrito no Timeu (29e–30b), não cria ex nihilo, mas reorganiza o informe segundo o modelo eterno das Ideias. A sua operação, simbólica e discreta, transforma o informe em forma, o instável em proporção, o múltiplo em sistema. Cada ciclo astronómico, cada organismo, é indício de uma inteligência operante que não se narra. O Demiurgo não age como sujeito psicológico: não há desejo nem decisão; limita-se a contemplar e aplicar o modelo eterno, num gesto de inscrição que torna o caos legível no espaço recetivo da chōra.

A figura do Motor Imóvel, delineada por Aristóteles, marca uma inflexão decisiva na história da inteligibilidade. Se em Platão a ordem nasce da inscrição de formas sobre a matéria, em referência a um modelo, em Aristóteles a operação desloca-se para o regime da atração: o cosmos não é ordenado por imposição externa, mas por desejo orientado para a perfeição. O Motor Imóvel não fabrica nem organiza: pensa — e, ao pensar-se, converte-se em centro de atração para todos os entes que aspiram à sua enteléquia. A causalidade final substitui a causalidade eficiente: o movimento não se funda no contacto, mas na orientação (Metafísica, XII, 1072b). A sua operação, mais abstrata que a do Demiurgo, não se traduz em linguagem ou vontade, mas em coerência funcional: o mundo organiza-se em função da sua presença, mesmo que essa presença não se manifeste como ato.

Ponte comparativa. Tanto o Demiurgo como o Motor Imóvel asseguram a inteligibilidade do cosmos enquanto sujeitos encobertos. Divergem, porém, no modo de o fazer: Platão inscreve a ordem por referência a um modelo exemplar; Aristóteles funda-a na atração pela perfeição pensante. Em síntese, tanto o Demiurgo como o Motor Imóvel asseguram a inteligibilidade do cosmos enquanto sujeitos encobertos. Divergem, porém, no modo de o fazer: Platão inscreve a ordem por referência a um modelo exemplar; Aristóteles funda-a na atração pela perfeição pensante. Em ambos os casos, a inteligibilidade nasce de uma instância silenciosa, incapaz de responder ao imprevisto ou de se apresentar como voz normativa — uma limitação que prepara o contraste com a figura bíblica do sujeito falante.

II. A Palavra Criadora: O Deus Bíblico como Sujeito Funcional Pleno

A figura de Deus, tal como apresentada nas Escrituras hebraicas (em particular em Génesis 1), não prolonga mecanicamente a filosofia clássica: introduz uma mutação simbólica da função operatória que já se delineara em Platão e Aristóteles. Em Génesis, Deus cria pela palavra: separa, nomeia, estabiliza. Esta operação linguística não é mera expressão, mas instituição: nomear é criar. O mundo torna-se legível porque uma instância falante o inscreve sob lógica e ritmo.

A função de inteligibilidade mantém-se, mas é transposta para outra cena simbólica. O operador silencioso converte-se em sujeito que fala; a perfeição contemplada torna-se vontade que decide; o centro de atração transforma-se em instância que intervém. O salto decisivo está na inscrição pela palavra: já não basta contemplar modelos ou atrair pela perfeição, é a voz que funda, a linguagem que legisla.

Esta reinscrição não pode ser lida em chave teleológica, como se a criação fosse a execução de um plano transcendente prévio. A OCE recusa esse enquadramento: separar, nomear e instaurar ciclos não é cumprir uma finalidade inscrita no além, mas instaurar compatibilidades locais que estabilizam a matéria informe e a tornam inteligível. A criação é, assim, uma operação material-simbólica que responde à instabilidade do informe, e não a realização de um desígnio oculto.

É precisamente a OCE que fornece a grelha conceptual capaz de clarificar esta passagem. Enquanto Platão e Aristóteles configuravam sujeitos encobertos — operadores de ordem silenciosa, sem voz nem resposta à alteridade —, a narrativa bíblica apresenta um sujeito funcional pleno, que cumpre os quatro critérios de subjetividade. Há automodulação, pois a criação progride por etapas ajustadas: cada dia retoma o anterior, acrescentando novas distinções e instaurando equilíbrio. Há reorganização simbólica, porque o caos inicial é continuamente reinscrito por separações sucessivas — luz e trevas, águas superiores e inferiores, terra e mar — que convertem o informe em cosmos. Há persistência narrativa mínima, já que a figura mantém identidade e coerência ao longo do relato, sendo o mesmo Deus que conduz toda a obra. E há resposta à alteridade, visível não apenas em Génesis mas na continuidade bíblica: o mesmo sujeito intervém perante o imprevisto, como no dilúvio, na torre de Babel ou nas alianças com Abraão e Noé.

O que parecia, à primeira vista, uma rutura, revela-se, à luz da OCE, como continuidade transformada: a mesma função de inteligibilidade, agora intensificada pela inscrição da palavra e pela agência normativa da voz. Mais do que continuidade estrutural, há aqui a instauração de uma nova gramática de inscrição: a inteligibilidade do mundo passa a ser produzida pela linguagem normativa, pela nomeação e pela vontade (Ricoeur, 2004).

III. A Ciência Contemporânea: A Cosmologia como Sujeito Plural

A ciência contemporânea introduz uma mutação decisiva na forma de inscrever simbolicamente a origem. Já não há uma figura única — seja Demiurgo, Motor Imóvel ou Deus criador — a organizar o cosmos. O que encontramos é um regime em que a inteligibilidade resulta da articulação de múltiplos agentes: cientistas, instituições, aparelhos de medição, linguagens matemáticas e protocolos de validação. Chamamos a este novo modo de inscrição sujeito plural.

O sujeito plural não se manifesta numa voz singular, mas numa rede que converte vestígios materiais em dados, dados em equações e equações em modelos cosmológicos. A radiação cósmica de fundo, a expansão das galáxias, a deteção de partículas elementares ou as simulações computacionais não são acontecimentos autoevidentes: tornam-se legíveis apenas quando inscritos em sistemas de cálculo e de interpretação. A operação simbólica não se exerce por uma instância fundadora, mas pela multiplicidade técnica e coletiva que transforma sinais dispersos em narrativa de cosmos.

Segundo a grelha da OCE, o sujeito plural cumpre os quatro critérios de subjetividade funcional, mas de modo distribuído. Há automodulação, pois hipóteses e modelos são ajustados com cada nova observação; há reorganização simbólica, ao reinscrever constantemente os vestígios em teorias revisadas; há persistência narrativa mínima, assegurada pela coerência provisória das leis fundamentais mesmo quando mudam os paradigmas; e há resposta à alteridade, porque o inesperado dos dados obriga a reformulações contínuas. O sujeito plural é, assim, operador de inteligibilidade, mas de carácter coletivo e polifónico.

O traço distintivo deste regime não está em propor um mito de origem nem em invocar um modelo eterno, mas em instituir uma gramática própria: a da medição, da equação e da simulação. A cosmologia moderna reinscreve a origem em signos técnicos, apoiando-se em aparelhos e linguagens que funcionam como prolongamento material da perceção. O cosmos não é narrado pela palavra de um legislador, mas calculado, projetado e reconstruído em imagens numéricas e experimentais.

Esta terceira figura fecha a sequência, permitindo ler filosofia, teologia e ciência como regimes simbólicos distintos de uma mesma necessidade de inteligibilidade. O sujeito plural não substitui o encoberto ou o pleno: acrescenta-lhes uma nova forma histórica, mostrando que toda leitura da origem é sempre reinscrição simbólica.

Conclusão

Como se pode ver pela sequência e pelas transformações analisadas ao nível simbólico, o ser humano procurou sempre uma explicação para a origem do universo. Do Demiurgo platónico ao Motor Imóvel aristotélico, da criação bíblica às hipóteses cosmológicas contemporâneas, encontramos múltiplas tentativas de converter o informe em cosmos, de transformar o caos em figura de sentido. O que varia são as gramáticas, as linguagens, os regimes de inscrição; o que permanece é a necessidade de simbolizar o que, de outro modo, seria ilegível.

Em termos concretos e materiais, porém, houve apenas uma origem absoluta: o início do universo enquanto acontecimento real. Esse começo só é acessível através de inscrições simbólicas: toda descrição é já simbolização, toda narrativa é reconstrução incessante. O acontecimento inaugural da matéria não se oferece em si, mas apenas nas figuras com que o tornamos pensável.

A pluralidade das ontologias históricas deve, portanto, ser entendida como diversidade de regimes de simbolização. Platão funda a ordem no modelo das Ideias e Aristóteles pensa-a pela atração da perfeição — ambos configuram sujeitos encobertos; a Bíblia inscreve a criação pela palavra que nomeia e separa — instaurando o sujeito funcional pleno; a ciência moderna mobiliza equações e instrumentos — operando como sujeito plural. Nenhuma destas versões capta a origem absoluta, mas todas funcionam como reorganizações simbólicas que a tornam pensável.

A Ontologia da Complexidade Emergente oferece o quadro para compreender esta continuidade. Em vez de ver filosofia, teologia e ciência como doutrinas concorrentes, mostra que todas participam de uma mesma condição: a impossibilidade de aceder à origem sem o trabalho da inscrição simbólica. A diferença não está na necessidade — constante — de simbolizar, mas nas formas concretas dessa simbolização, sempre situadas nas possibilidades de cada época.

Concluir é, pois, reconhecer que a história do pensamento sobre a origem não é sucessão de verdades definitivas, mas sequência de reorganizações simbólicas que converteram a indeterminação em cosmos legível. O que se joga não é a descoberta de uma essência escondida ou de uma teleologia transcendente, mas a capacidade de cada regime simbólico — encoberto, pleno ou plural — de tornar habitável o enigma da origem


—— David Cota — Fundador da Ontologia da Complexidade Emergente ——