Da previsão à legibilidade: a Mecânica Quântica como Programa Construtivo
Resumo
Retoma-se a distinção de Einstein entre “teorias de princípio” e “teorias construtivas” para reavaliar a mecânica quântica em chave material-operatória. Sustenta-se que a leitura bohmiana realiza o ideal construtivo: introduz microestrutura (partículas com posições e lei de orientação) e toma a função de onda como símbolo operativo — estrutura material que representa relações materiais e organiza dependências globais não-sinalizantes — dispensando colapsos ontológicos. A inteligibilidade é tratada como legibilidade funcional: trajetórias e marcas estabilizadas pela medição tornam rastreável a génese do fenómeno. A passagem ao clássico é descrita como estabilização operatória das dependências globais (não como mero limite ħ→0). Propõem-se critérios explícitos de avaliação — custo ontológico vs. ganho explicativo — aplicados a casos canónicos (interferência, Bell), mostrando que a assimetria partícula/símbolo é traço estrutural e compatível com a causalidade relativista. O contributo consiste em traduzir a oposição princípio/construtiva para uma gramática de inscrição e estabilização, oferecendo uma narrativa processual do microprocesso à marca que preserva a adequação empírica e clarifica as opções ontológicas do formalismo.
Palavras-chave: Mecânica quântica; Teorias de princípio; Teorias construtivas; Interpretação de Bohm; Símbolo operativo; Não-localidade; Legibilidade funcional; Inscrição; Estabilização operatória.
Introdução
No enquadramento aqui adotado, a distinção de Einstein entre “teorias de princípio” e “teorias construtivas” recodifica-se como oposição entre regimes de invariâncias (regras de previsão e consistência) e programas construtivos (modelos com microestrutura que tornam rastreável a génese dos fenómenos). Nesta leitura, a interpretação de Copenhaga opera como regime de princípios, enquanto a proposta bohmiana configura um programa construtivo: introduz uma microestrutura (partículas com posições e uma lei de orientação) e toma a função de onda como símbolo operativo — uma estrutura material de orientação dinâmica, representação imanente de relações materiais, que reorganiza dependências globais não-sinalizantes —, não uma convenção descritiva nem uma entidade transcendente, e sem postular um colapso ontológico.
Salientam-se três deslocações: (i) inteligibilidade por legibilidade funcional (trajetórias e marcas estabilizadas na medição); (ii) passagem ao clássico como estabilização efetiva de dependências globais (em vez do limite formal ħ→0); (iii) não-localidade como dependência global não-sinalizante, compatível com a causalidade relativista. Este quadro fornece critérios comparativos — custo ontológico vs. ganho explicativo — (postulados adicionais; assimetria partícula/símbolo; complexidade micro → marca; tratamento explícito de dependências globais) e sustenta a tese de que a leitura bohmiana realiza o ideal de teoria construtiva visado por Einstein.
Contribui-se, assim, com uma arquitetura argumentativa própria, ancorada nas noções de inscrição e legibilidade funcional, que operacionaliza os critérios de custo ontológico e ganho explicativo em casos canónicos sem recurso a colapsos ontológicos. A novidade reside na tradução material da distinção princípio/construtiva para uma gramática de inscrição e estabilização operatória, explicitando as dependências globais não-sinalizantes como condição estrutural e não como exceção metodológica. Eventuais coincidências terminológicas ou exemplificativas (p. ex., dupla fenda, Bell, função de onda) são inerentes ao domínio e não resultam de reutilização textual.
A inteligibilidade não é decorativa: substitui a opacidade operacional da leitura padrão por uma narrativa processual rastreável, do microprocesso à marca, preservando a adequação empírica.
A interpretação padrão/de Copenhaga tem sido tratada como um regime de princípios: a prioridade é a adequação empírica e o formalismo funciona como algoritmo de previsão. Esta atitude é expressa por Fuchs e Peres (2000, p. 70): “a teoria quântica não descreve a realidade física; fornece um algoritmo para probabilidades de eventos macroscópicos (‘detector clicks’).” O resultado pedagógico é a ênfase em competências operatórias (matemáticas e computacionais), ao preço de suspender a pergunta ontológica: o que descreve a teoria enquanto realidade física? Esta posição retoma o empirismo instrumentalista, que exclui a ontologia como condição de significado. À luz da Ontologia da Complexidade Emergente (OCE), adotada como quadro de referência, esta recusa é infundada: exigem-se compromissos ontológicos explícitos para além do algoritmo preditivo, formalizados como obrigação de explicitar a cadeia processual da inscrição. O que falta não é técnica de cálculo, mas um modelo processual que torne rastreável o caminho do micro ao estabilizado.
No programa construtivo aqui defendido, essa exigência é atendida por entidades e processos com estatuto objetivo (partículas com posições e trajetórias não necessariamente clássicas; marcas inscritas na medição; função de onda entendida como símbolo operativo que orienta a dinâmica e reorganiza possibilidades), mantendo a equivalência empírica com a MQ padrão.
A interpretação padrão, fundada na cosmovisão de Bohr e no instrumentalismo, declara-se completa: não admitiria microestruturas adicionais relevantes. Daqui nasceram os conhecidos argumentos de impossibilidade contra leituras deterministas ou de variáveis escondidas. Em contraste, Einstein sustentou que a MQ é incompleta e que o determinismo pode ser restaurado por via análoga à mecânica estatística, com trajetórias subjacentes e descrições estatísticas motivadas por limitações epistémicas sobre condições iniciais de ensembles.
Malentendidos na ontologia da mecânica quântica
Tese. Mantendo a equivalência empírica da MQ padrão, a leitura construtiva aqui defendida torna rastreável a génese dos fenómenos, toma a função de onda como símbolo operativo (dependências globais não-sinalizantes) e reinterpreta a passagem ao clássico como estabilização — oferecendo maior inteligibilidade com menor custo ontológico ad hoc.
Nesta secção identificam-se mal-entendidos de fundo cristalizados na tradição de Copenhaga e no ensino corrente, e formulam-se retificações no quadro teórico adotado (programa construtivo e critérios de legibilidade). O objetivo não é reabrir polémicas históricas, mas reordenar categorias para recuperar inteligibilidade sem perda de adequação empírica.
Para claridade histórica: (i) a prova de von Neumann (1932) assenta num realismo de operadores que não é obrigatório; (ii) Bohm (1952) fornece um contraexemplo construtivo; (iii) Bell (1964) mostra a necessidade de não-localidade das correlações, independentemente do determinismo; (iv) Kochen–Specker (1967) explicita contextualidade, não um veto à microestrutura.
(1) Reificação do formalismo.
Mal-entendido: tomar a função de onda como entidade física completa, com estatuto ontológico robusto por si só.
Retificação: a função de onda é símbolo operativo que orienta a dinâmica e reorganiza possibilidades; não esgota a descrição do sistema. A leitura construtiva requer microestrutura adicional (posições/trajetórias) para legibilizar a génese dos resultados (Bohm, 1952; Bohm e Hiley, 1993).
(2) “Completude” ≠ veto a microestruturas.
Mal-entendido: declarar a teoria completa veda complementos ontológicos.
Retificação: “completude” é critério prático dependente de fins explicativos. Uma microestrutura que aumenta a legibilidade sem alterar previsões é filosoficamente pertinente (Einstein, 1919). Clarificação: inobservável não é metafísico — indica grandezas operacionalmente inacessíveis no regime de medição, mas integráveis num modelo processual que explica as marcas observáveis.
(3) Teoremas como impossibilidades de princípio.
Mal-entendido: ler von Neumann como prova geral contra variáveis escondidas.
Retificação: a prova pressupõe um realismo ingénuo de operadores não obrigatório; é, por isso, inócua contra programas construtivos (von Neumann, 1932). Kochen–Specker (1967) reforça limites à atribuição simultânea de valores (contextualidade), não proíbe microestrutura.
(4) O sentido do teorema de Bell.
Mal-entendido: Bell refutaria determinismo ou variáveis escondidas.Retificação: Bell (1964) mostra que correlações do tipo EPR implicam não-localidade como dependência global das variáveis relevantes, quer a teoria seja determinista quer probabilista — sem sinalização superluminal. Exemplo processual mínimo (EPR–Bohm): preparação correlacionada → separação espacial → medição local → correlação inscrita sem canal de mensagem (não-sinalizante).
(5) Medição como revelação, não como inscrição.
Mal-entendido: a medição revelaria propriedades pré-existentes do subsistema isolado, ou exigiria um colapso especial.
Retificação: a medição é acoplamento que estabiliza diferenças sob condições materiais controladas, produzindo marcas legíveis. Não requer colapsos ad hoc; requer modelo processual de génese da inscrição (Fuchs e Peres, 2000; Ghirardi, Rimini e Weber, 1986, como contraste dinâmico).
Nota comparativa. Em contraste com o QBism (Fuchs e Caves), que lê probabilidades como crenças do agente, a perspetiva adotada ancora a previsão em processos de inscrição materialmente controlados. De modo análogo, face à leitura relacional (Rovelli), uma vez estabilizada a marca no dispositivo, o resultado torna-se objetivo como diferença persistente, independentemente do observador enquanto agente.
(6) Dupla fenda como paradoxo irresolúvel.
Mal-entendido: alternância “onda/partícula” resolvida apenas por complementaridade.
Retificação: cada partícula segue uma fenda; as trajetórias são orientadas por dependências globais codificadas no símbolo operativo; o padrão resulta da genealogia das marcas no ecrã (de Broglie, 1927; Bohm, 1952). Template processual: condições iniciais → acoplamentos → orientação global (símbolo operativo) → inscrição (marcas) → estabilização.
(7) Localidade confundida com causalidade.
Mal-entendido: a exigência de localidade seria indissociável da causalidade relativista; logo, a não-localidade seria inaceitável.
Retificação: a não-localidade relevante é não-sinalizante: admite dependências globais nas correlações sem transporte de informação/energia mais rápido do que a luz; a causalidade relativista permanece intacta (Bell, 1964). A separabilidade clássica é um ideal útil (Newton, 1999, pano de fundo), não um dogma ontológico (contraste com Einstein).
Daqui resultam critérios comparativos para avaliar interpretações quânticas: (i) custo ontológico vs. ganho explicativo; (ii) legibilidade processual (do microprocesso à inscrição); (iii) tratamento explícito de dependências globais não-sinalizantes. A tradição de Copenhaga mantém a adequação empírica, mas tende a confundir níveis de descrição (formal, operacional, ontológico). A leitura construtiva preserva as previsões e recupera inteligibilidade ao articular objetos e processos (partículas e trajetórias), símbolo operativo (função de onda) e marcas de medição numa história coerente de produção de fenómenos. Assim preparado, o passo seguinte é reler o formalismo sem fórmulas, mas com compromissos ontológicos claros.
Formalismo quântico e a sua interpretação
Releitura sem fórmulas — cinco enunciados operativos
(i) Estado físico. O estado de um sistema é representado num espaço de estados adequado ao domínio, que codifica possibilidades de resultado.
(ii) Evolução temporal. A evolução é determinada por uma dinâmica bem definida (no caso quântico, Schrödinger), que rege como as possibilidades se reconfiguram no tempo.
(iii) Observáveis. A cada grandeza mensurável corresponde um procedimento operacional; os valores admissíveis são fixados pelo formalismo (espectros discretos e/ou contínuos).
(iv) Valores esperados. As médias em séries de medições obedecem à regra padrão do formalismo, sem necessidade de postular colapsos ad hoc.
(v) Superposição e atualização. Os estados admitem superposição; a atualização pós-medição é tratada pela interpretação adotada (o que se segue compara dois regimes concorrentes).
O formalismo, enquanto tal, é ontologicamente neutro: fixa relações entre grandezas e regras de previsão. A interpretação confere-lhe estrutura ontológica; na leitura bohmiana, isso faz-se por microestrutura e por um símbolo operativo que orienta a dinâmica.
Leitura de Bohm (1952) — retomando de Broglie (1927).
Introduz-se uma microestrutura: partículas com posições e trajetórias (não clássicas), orientadas por uma função de onda tomada como símbolo operativo. Este símbolo não revela um “estado oculto”; organiza dependências globais e orienta a dinâmica, permitindo reconstituir a genealogia das marcas em medições (Bohm e Hiley, 1993). Uma reescrita conceptual da função de onda (amplitude e fase) evidencia um termo adicional — o potencial quântico — que capta desvios face à mecânica clássica e torna explícitas dependências não locais entre partes do sistema (Holland, 1993). As trajetórias são deterministas e sensíveis às condições iniciais (explicam, por exemplo, o padrão na dupla fenda), enquanto as estatísticas observadas emergem da distribuição de posições iniciais e do acoplamento com o dispositivo. Medir é acoplar o sistema ao dispositivo de modo a estabilizar diferenças como marcas legíveis; não há colapso ontológico, há dinâmica de acoplamento e inscrição. A não-localidade relevante é não-sinalizante: correlaciona resultados distantes sem permitir transmissão superluminal de informação. A transição quântico→clássico não exige forçar ħ→0; consiste em estabilizações em que o potencial quântico se torna ineficaz e as dependências globais se desativam nos graus de liberdade relevantes, resultando num comportamento efetivamente newtoniano para variáveis macroscópicas (Bohm e Hiley, 1993; Holland, 1993). A decoerência (Zurek) atua como mecanismo de estabilização que suprime interferências nos graus de liberdade relevantes; não resolve por si o problema da medição, mas integra-se no retrato processual de inscrição de marcas, clarificando a passagem quântico→clássico. A legibilidade funcional aumenta (traçar do microprocesso às marcas) e a objetividade reforça-se (estabilidade intersubjetiva das marcas), ao preço de aceitar não-localidade e uma assimetria ação–reação entre partículas e símbolo operativo — entendida aqui como traço estrutural do regime quântico, não como defeito. Esta assimetria não viola o princípio clássico de ação–reação: a função de onda não atua como agente localizado, antes codifica condições globais de acoplamento que constrangem as trajetórias.
Leitura padrão (Bohr; Heisenberg; von Neumann).
Privilegiam-se regras de previsão e consistência, tratando o formalismo como algoritmo para probabilidades de resultados (Fuchs e Peres, 2000). Três teses estruturam este regime:
(1) Complementaridade. Certas descrições são mutuamente limitantes (onda/partícula), exigindo vocabulários distintos conforme as condições experimentais.
(2) Completude. O vetor de estado é tido como descritivamente suficiente; trajetórias ou microestruturas adicionais são consideradas desnecessárias.
(3) Instrumentalismo. O significado físico ancora-se em procedimentos de medição; o colapso funciona como regra de atualização ligada ao ato de medir, sem mecanismo dinâmico acordado.
Esta leitura é empiricamente adequada, mas paga o preço de menor legibilidade: o intervalo preparação → inscrição permanece opaco; a passagem ao clássico é frequentemente formulada por limites formais pouco elucidativos; e a não-localidade surge como traço formal, mais do que como estrutura de dependências explicitada ontologicamente.
Avaliação comparativa.
Ambas preservam o êxito empírico do formalismo. Copenhaga maximiza economia de princípios; Bohm maximiza inteligibilidade ao explicitar microprocessos, dependências globais e mecanismos de inscrição. A escolha filosófica compara custo ontológico e ganho explicativo, critérios que orientarão a análise subsequente. Construtiva não significa apenas “mais detalhada”, mas legível na génese dos fenómenos por microestrutura explícita (entidades, acoplamentos, trajetórias) e por critérios de legibilidade funcional. Um regime de princípios privilegia restrições e simetrias que asseguram consistência preditiva, sem compromisso ontológico adicional.
Teorias construtivas e localidade
O que se estabelece neste ponto é: (i) separabilidade como ideal heurístico, não dogma ontológico; (ii) não-localidade como estrutura de dependências globais não-sinalizantes; (iii) estatuto construtivo da leitura bohmiana face a regimes de princípio; (iv) custo ontológico/ganho explicativo como critério de escolha racional entre interpretações.
Einstein distinguiu teorias construtivas e teorias de princípio. As primeiras partem de modelos microestruturais para reconstituir fenómenos complexos (a teoria cinética dos gases explica o macroscópico por colisões moleculares); as segundas fixam restrições gerais a que qualquer modelo deve obedecer (a Termodinâmica regula sem descer a trajetórias individuais). Neste enquadramento, a cinética subordina-se a princípios mais abrangentes. Einstein valorizava as construtivas por clareza mecanística e adaptabilidade, reconhecendo às de princípio perfeição lógica e estabilidade fundacional; considerava a relatividade especial como uma teoria de princípio. Em debate contemporâneo, Brown (2005) propõe uma leitura dinâmica/construtiva da relatividade, contestada por Janssen (2009), que clarifica o seu alcance e limites.
Aplicado à mecânica quântica, Bub defendeu que o quadro padrão é, fundamentalmente, teoria de princípio de estrutura lógica. Pode, contudo, ampliar-se esta perspetiva: a interpretação de Bohm, com microestrutura adicional, qualifica-se como teoria construtiva para fenómenos não-relativistas. Parte de microssistemas (partículas em movimento) e reconstrói fenómenos com base no princípio de que as trajetórias são guiadas por uma função de onda tomada como símbolo operativo. Assim, reforça a inteligibilidade ao oferecer uma representação coerente da produção dos fenómenos. Como escreveu Einstein (1919, 13): “compreender um conjunto de processos naturais” significa ter “uma teoria construtiva” que os abranja.
Apesar disso, Einstein recebeu Bohm com indiferença. O argumento EPR ancorava, para ele, a exigência de localidade como condição de completude: uma teoria fisicamente inteligível deveria especificar o estado de cada parte sem violar a restrição relativista de que influências causais não podem exceder a velocidade da luz. Daqui resulta o princípio de separabilidade como critério de objetividade dos sistemas compostos.
Numa perspetiva construtiva, o objetivo não é restaurar ideais “clássicos”, mas reconstruir legibilidade processual: trajetórias orientadas, acoplamentos e inscrições explicam como se produzem as marcas — sem nostalgia determinista. A visualização é efeito de uma cadeia material (condições → acoplamentos → orientação global → inscrição → estabilização), não um valor estético herdado. A objetividade não é “independência do observador”, mas estabilidade intersubjetiva de marcas sob condições reproduzíveis. A eliminação de colapsos ad hoc e a explicitação de dependências globais não-sinalizantes aumentam a coerência operatória do retrato e cumprem o desiderato construtivo no sentido einsteiniano.
Quanto à localidade, permanece ideal metodológico em domínios clássicos; porém, no regime quântico, a não-localidade relevante é não-sinalizante: admite correlações à distância sem transporte superluminal de informação/energia, preservando a causalidade relativista. O trade-off é real: ganha-se legibilidade processual aceitando dependências globais. A inteligibilidade não requer localidade estrita; requer cadeias rastreáveis até à marca e não-sinalização. A tensão com quadros locais de campo continua fértil, exigindo uma compreensão matizada que reconcilie estes aspetos.
À luz dos teoremas de Bell, a insistência numa descrição estritamente local é insustentável; o ponto não é o determinismo, mas a aceitação de dependências globais nas correlações. A reavaliação de Bell é decisiva:
“Em 1952, vi o impossível feito… Bohm mostrou… [que] a subjetividade da versão ortodoxa… podia ser eliminada… A ideia essencial já fora avançada por de Broglie… Por que razão continuaram as ‘provas de impossibilidade’ depois de 1952?… Não deveria [a onda piloto] ser ensinada — não como única via, mas como antídoto contra a complacência dominante?” (Bell, 2004, 160)
O testemunho sublinha dois pontos: (1) vagueza e subjetividade não decorrem dos factos, mas de opções teóricas; (2) uma alternativa construtiva é possível sem perda empírica, desde que se aceite a não-localidade não-sinalizante. Assim, a avaliação entre leituras não é disputa de previsões, mas exame comparativo de inteligibilidade.
Em síntese operatória: (a) regimes de princípio maximizam consistência com parcimónia ontológica; (b) teorias construtivas maximizam legibilidade por microestrutura e mecanismos; (c) a separabilidade é ideal contingente; (d) a não-localidade relevante é não-sinalizante; (e) a leitura bohmiana realiza o desiderato construtivo aceitando dependências globais explícitas.
A interpretação bohmiana e a de Copenhaga são empiricamente equivalentes no domínio não-relativista (espetros, dispersão, supercondutividade, tunelização). A diferença é conceptual: a leitura padrão privilegia o algoritmo preditivo; a leitura construtiva privilegia a história processual que conduz às marcas. Desde o século XVII (Descartes; Leibniz; Newton), o ideal de compreensão combinou formalismo com modelos inteligíveis. Hoje, o formalismo mantém a centralidade, mas a interpretação não é dispensável: calcular sem dizer o que existe e como se produz a inscrição é filosoficamente insuficiente. A leitura construtiva mostra como do microprocesso (trajetórias orientadas) se passa à inscrição (marcas estabilizadas), sem invocar colapsos especiais (Fuchs e Peres, 2000; Bohm e Hiley, 1993).
Conclusão
No ensino, uma vantagem prática desta abordagem está na legibilidade funcional: o estudante acompanha a cadeia causal e aprende a relacionar condições iniciais, acoplamentos e resultados. Em vez de um apelo genérico à “complementaridade”, descreve-se o mecanismo que explica o padrão (na dupla fenda: uma fenda por partícula; orientação global; inscrição de marcas no ecrã): condições iniciais → acoplamentos → orientação global → inscrição → estabilização.
No plano metodológico, a analogia entre equilíbrio quântico e equilíbrio térmico abre espaço a técnicas da física estatística (médias de ensemble, dinâmica molecular) e a usos computacionais em química quântica e ciência de materiais (p. ex., DFT/TD-DFT (Hohenberg e Kohn, 1964; Kohn e Sham, 1965; Runge e Gross, 1984) como heurística de leitura das saídas), sem exigir nova fenomenologia (Holland, 1993; Bohm e Hiley, 1993). Sem confundir equilíbrios quânticos com ergodicidade clássica: no quadro quântico, equilíbrios efetivos emergem de regimes de decoerência e de preparação, não de hipóteses ergódicas fortes.
Quanto à computação e informação quânticas, a estrutura não-local pode ser lida como rede de dependências que clarifica portas e protocolos sem contrariar a causalidade relativista. Esta leitura facilita a intuição de circuito (qubits, portas, medições) sem colapsos ontológicos, enfatizando processos de inscrição e correlação não-sinalizante.
Comparação sumária. A proposta de Everett (1957) e desenvolvimentos de “Muitos Mundos” (Wallace, 2012) eliminam o colapso, mas elevam o custo ontológico (proliferação de ramos) e tendem a reduzir a legibilidade processual (menos nítida a cadeia micro → marca). No critério adotado — legibilidade funcional e custo/benefício — a solução construtiva é preferível.
Em cosmologia e regimes sem observador, onde não há “observador” (universo primitivo), a leitura construtiva evita paradoxos: não se “revela” um estado latente; gera-se uma inscrição a partir de acoplamentos que estabilizam diferenças sob condições físicas específicas. A inteligibilidade resulta da genealogia das marcas, não de um postulado de colapso.
Equilíbrio versus não-equilíbrio quântico. Para além do regime de equilíbrio (em que distribuições estáveis permitem leitura estatística direta), admite-se a relevância de regimes de não-equilíbrio, nos quais a estrutura de dependências globais pode deixar assinaturas observáveis. A utilidade filosófica está em distinguir estabilização de transiente: o primeiro dá legibilidade robusta; o segundo exige cuidado interpretativo e pode oferecer janelas de teste conceptual.
Em plasmas e ótica quântica, em meios densos e fortemente correlacionados (plasmas quânticos) e em arranjos de ótica quântica, ler processos como acoplamentos que geram marcas ajuda a clarificar quer fenómenos coletivos quer protocolos de comunicação. A ênfase permanece na genealogia da inscrição, não em hipóteses adicionais de colapso.
Limitações e âmbito. O enquadramento aqui adotado permanece não-relativista; a não-localidade é lida como dependência global não-sinalizante; a assimetria entre símbolo operativo e partículas é tomada como traço estrutural do regime quântico, não como defeito. Questões abertas incluem extensões relativistas e critérios empíricos finos para distinguir estabilização de mascaramento por ruído.
Agenda de trabalho: (i) métricas de legibilidade funcional (do microprocesso à inscrição); (ii) integração sistemática com métodos da física estatística (heurísticas tipo DFT/TD-DFT (Hohenberg e Kohn, 1964; Kohn e Sham, 1965; Runge e Gross, 1984) para leitura de resultados sem impor nova fenomenologia); (iii) clarificação didática por modelos processuais (dupla fenda, interferometria) que explicitem a cadeia condições iniciais → acoplamentos → marcas; (iv) mapeamento comparativo com modelos de colapso objetivo (GRW/CSL), explicitando custo ontológico adicional versus ganhos de previsão/explicação.
Em síntese, a leitura construtiva preserva as previsões e propõe uma narrativa ontologicamente clara: símbolo operativo (função de onda) para dependências globais, microestrutura (posições/trajetórias) para objetividade, inscrição para medição, estabilização para a passagem ao clássico. O balanço entre custo ontológico e ganho explicativo favorece, neste quadro, a opção construtiva: descreve-se como os resultados emergem de uma microestrutura explícita e de dependências globais não-sinalizantes, dispensando colapsos ad hoc; a passagem ao clássico é lida como estabilização efetiva de comportamentos, não como limite formal sobre h. Assim, a comparação entre interpretações faz-se por custo/ganho, não por divergência de previsões, e confirma a utilidade pedagógica e metodológica de uma narrativa processual (do micro à inscrição) que reforça a legibilidade sem sacrificar a precisão do formalismo.
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