A Filosofia na Era da Emissão Sem Escuta
Este ensaio examina a condição contemporânea da filosofia sob o regime da emissão sem escuta, caracterizado pela proliferação textual desvinculada de qualquer função interlocutiva. Argumenta-se que a produção discursiva atual não reorganiza o campo do possível, mas se converte em mecanismo de visibilidade e legitimação institucional. A crítica concentra-se em três núcleos: a inflação textual como sintoma de desarticulação simbólica; a citação transformada em emblema de pertença em vez de operador conceptual; e o silenciamento algorítmico, que converte a diferença em mera estatística de compatibilidades. Contra este cenário, o texto propõe repensar a filosofia como mediação de legibilidade simbólica, onde escuta e hesitação se tornam condições ontológicas do pensamento. O argumento articula-se em diálogo crítico com Adorno e Deleuze, recuperando diagnósticos sobre a esterilização da comunicação e deslocando-os para uma ontologia da complexidade emergente. A contribuição central reside em afirmar a filosofia não como comentário ou performance, mas como gesto operatório de inscrição simbólica capaz de sustentar diferença e reorganização no interior da saturação discursiva contemporânea.
A filosofia contemporânea confronta-se com uma mutação estrutural das suas condições de possibilidade simbólica. Não se trata de uma crise de conteúdos nem de um declínio institucional, mas de uma alteração profunda na sua função operatória. A escrita filosófica multiplicou-se de forma exponencial — artigos, comunicações, publicações académicas e intervenções digitais constituem um fluxo contínuo de emissão. No entanto, este excesso quantitativo não gerou ampliação do espaço simbólico: produziu antes uma rarefação da escuta. O paradoxo é apenas aparente: nunca se escreveu tanto, mas nunca se leu tão pouco. E esta disjunção não resulta da preguiça ou da distração, mas da própria reorganização algorítmica dos regimes de visibilidade, reconhecimento e validação.
A Ontologia da Complexidade Emergente1 permite-nos ler este fenómeno não como sintoma passageiro, mas como efeito de uma reorganização técnica da inscrição simbólica. Escrever filosofia deixou de ser uma operação de abertura à alteridade para se tornar um gesto de autopresença num circuito saturado. A escuta2, entendida não como passividade recetiva mas como disponibilidade para a reconfiguração simbólica, foi substituída por uma lógica de emissão performativa. Neste novo regime, o pensamento não emerge da interrupção, da hesitação ou da exposição ao outro, mas da necessidade de manter presença visível num espaço que recompensa a produção incessante, e não a qualidade da inscrição. A filosofia, assim reconvertida, já não opera sobre o real — apenas circula dentro de um sistema de redundâncias autorreferentes.
I. A Inflação Textual e o Colapso da Escuta
O primeiro sinal desta mutação é a inflação textual. A escrita filosófica — entendida como prática de inscrição simbólica do real — deixou de estar articulada à sua função interlocutiva. Não se escreve mais para responder a uma questão, interpelar um problema, ou prolongar uma escuta. Escreve-se para ocupar espaço. Escreve-se para estar presente. A consequência é uma inversão ontológica da função da linguagem filosófica: de meio de escuta e reorganização simbólica, ela passa a ser mecanismo de visibilidade e legitimação. Esta transformação não é apenas sociológica; é operatória. A filosofia perde a sua função de hesitação simbólica3 diante do real e transforma-se em estratégia de emissão.
Neste novo regime, todo gesto de escrita tende a ser absorvido por um circuito performativo de autoafirmação. O texto já não se dirige a um outro, nem mesmo ao real: dirige-se ao sistema que o valida. O problema não está apenas no volume da produção, mas na sua orientação. A escrita, quando destituída de escuta, torna-se apenas proliferação sem reorganização — e portanto, sem pensamento. A Ontologia da Complexidade Emergente recusa a ideia de que a multiplicação de discursos seja, por si só, sinal de vitalidade simbólica. A produção só é simbólica quando reorganiza a estrutura do possível — quando desloca, quando inscreve o que antes não tinha lugar.
A escuta filosófica é, neste horizonte, mais do que uma disposição: é uma função estrutural da inscrição. Sem escuta, não há gesto filosófico. Escutar é permitir que o outro — seja o outro pensamento, o outro corpo ou o outro mundo — possa comparecer sem ser imediatamente subsumido. É sustentar a hesitação necessária para que uma diferença se inscreva. Quando a emissão se autonomiza, esta possibilidade desaparece. O que se produz já não é reorganização simbólica, mas apenas repetição operatória4.
A frase "quanto mais se escreve, menos se lê" não é um slogan antitecnológico, nem um lamento conservador. É um diagnóstico ontológico. Ela enuncia a condição atual de uma filosofia sem escuta, em que a inflação da produção não gera diferença, mas saturação. E onde há saturação, não há emergência simbólica — há apenas ruído operatório. O excesso de emissão não amplia o espaço simbólico: colapsa-o.
Por isso, pensar a filosofia na era da emissão sem escuta exige mais do que lamentar a velocidade ou a superficialidade dos tempos. Exige uma reconceptualização da função mesma da escrita filosófica. O problema não está no número de textos, mas na ausência de escuta como condição de inscrição simbólica. A verdadeira questão é esta: como reinscrever a escuta no coração do gesto filosófico? Como sustentar o intervalo necessário para que a escrita volte a ser mundo — e não apenas presença?
II. A Citação Como Sintoma de Institucionalização
A citação, outrora gesto de filiação e resposta crítica, tornou-se hoje um mecanismo retórico de validação. Cita-se não para retomar uma linha de pensamento, nem para inscrever-se num diálogo, mas para sinalizar pertencimento. O nome citado funciona como sinal de alinhamento discursivo: opera como um emblema, não como um operador conceptual. Essa transformação converte o gesto filosófico em ritual de reconhecimento. O texto deixa de ser travessia argumentativa e torna-se vitrine de compatibilidades institucionais. O autor não arrisca o seu pensamento numa tensão com o outro citado — apenas o invoca como selo de aceitabilidade.
O efeito dessa mutação manifesta-se na conversão do texto filosófico em artefacto curricular. Em vez de campo de elaboração simbólica, ele passa a ser unidade de contagem: indexável, quantificável, rentável. O texto deixa de ser um corpo simbólico e passa a ser ficha técnica. Este deslocamento opera uma mutilação silenciosa do pensamento: a filosofia não é mais avaliada pelo que inaugura, mas pelo que reproduz. O critério deixa de ser a intensidade da questão e passa a ser a densidade do aparato referencial. Quanto mais nomes, mais fiabilidade simbólica. Mas esta fiabilidade não é epistémica — é estatística.
Para maximizar esta fiabilidade, o discurso filosófico começa a moldar-se estrategicamente. O estilo adapta-se às exigências do reconhecimento: frases mais citáveis, conceitos com aparência de novidade, estruturas que acomodam a extração de excertos. A escrita filosófica transforma-se em interface. Não é mais uma travessia de linguagem, mas uma superfície ajustada ao olhar avaliador. Este fenómeno cria uma estética da citabilidade: uma arte de escrever para ser destacado, separado, apropriado. O texto já não se organiza a partir da sua interioridade simbólica, mas da sua extraibilidade operativa.
Neste processo, a citação perde a sua função originária de reconhecimento da alteridade. O outro citado já não comparece como presença disruptiva. A sua voz não nos obriga a reorganizar nada. Torna-se um nome que circula. A operação de citar desativa o pensamento do citado e ativa apenas a sua aura simbólica. A alteridade é anulada pela função ornamental do nome. O gesto de citação converte-se em eco vazio — não há confronto, não há inscrição, não há resposta.
Este mecanismo revela a existência de uma economia de prestígio. O nome citado vale pelo que representa no campo académico, não pela sua função transformadora no texto. A citação opera como moeda de capital simbólico: acumula-se, contabiliza-se, distribui-se. Não é o pensamento que circula, mas a autoridade do nome. O texto filosófico é assim recoberto por uma camada de signos que não deslocam nada, apenas atestam pertencimento.
Esta lógica conduz à anulação da tensão constitutiva entre originalidade e herança. O texto filosófico passa a evitar qualquer dissenso real com os autores citados. Não se arrisca a reinterpretar, a contrariar, a deslocar. A autoridade da citação paralisa a deriva criativa. A escrita torna-se exibição, não embate. Deixa de ser resposta ao que nos excede, e torna-se celebração do que nos legitima.
Escrever para ser citado é, nesse sentido, esvaziar o gesto filosófico da sua alteridade. Porque a filosofia não nasce da repetição do já autorizado, mas da inscrição de uma dissonância que perturba o campo simbólico. A citação, quando não é risco, é ornamento. E o pensamento que se cerca de ornamentos já não quer perturbar — apenas confirmar.
III – O Silenciamento Algorítmico e a Ontologia da Indexação5
Na contemporaneidade, o silenciamento não se produz pela repressão, mas pela não-inscrição6. A ausência de voz não se deve à proibição explícita, mas à incapacidade de atravessar os filtros técnicos que definem o que pode ou não comparecer como real. O que não é indexado, não comparece; o que não é recuperável como sinal, é tratado como inexistente. Mas esta lógica não é epistémica — é ontológica. Já não se trata de ignorância ou negligência: trata-se da construção infraestrutural do mundo por filtros que organizam o campo do legível.
É neste ponto que os algoritmos deixam de ser meros instrumentos de ordenação da informação e passam a operar como gramáticas ontológicas7. A sua ação não é neutra nem exterior: ela incide sobre a matéria simbólica do mundo, determinando o que emerge e o que permanece opaco. O código, enquanto operador material, distribui visibilidade, define relevância, decide precedência. Neste sentido, não apenas gerimos informação sob a forma algorítmica — somos geridos por ela na constituição do que é pensável, dizível, circulável.
A pluralidade discursiva, tão celebrada pelas retóricas da rede, é uma ilusão mantida por uma curadoria automatizada que comprime a diferença sob protocolos de similaridade. O que aparece como diversidade é, muitas vezes, uma repetição maquínica de variações previsíveis. O algoritmo filtra não apenas por palavras-chave, mas por vetores de compatibilidade inferencial8 — tudo o que desvia, tudo o que excede, tudo o que resiste à predição estatística é desvalorizado. A alteridade não é silenciada por interdição, mas por irrelevância programada.
Este mecanismo instala um novo tipo de aceitabilidade: não mais baseada na argumentação, na força conceptual ou na novidade simbólica, mas na aderência a padrões operatórios. O pensamento deixa de ser avaliado pela sua capacidade de produzir reorganização simbólica e passa a ser julgado pela sua conformidade aos regimes técnicos de legibilidade9. Aquilo que não se deixa converter em compatibilidade inferencial é tratado como erro, ruído ou redundância. A legibilidade torna-se filtro de existência.
A consequência mais profunda dessa reorganização é a substituição do conflito simbólico — onde ideias, formas e vocabulários se enfrentam como modos divergentes de inscrição do mundo — por uma gramática de compatibilidade estatística. A divergência deixa de ser produtiva e passa a ser disfuncional. As ideias que não antecipam a sua própria aceitabilidade algorítmica tornam-se invisíveis. A exigência de previsibilidade, de adequação sem fricção, desloca a filosofia do espaço do pensamento para o espaço da otimização.
Não estamos apenas diante de um sistema de triagem técnica. Estamos diante de uma economia do pensável10. Aquilo que não é rentável em termos de atenção, de relevância calculada, de afinidade inferencial, é excluído do campo simbólico. A filosofia, neste novo regime, corre o risco de ser apenas aquilo que passa — e não aquilo que pensa. Porque pensar, neste sentido, exige o impensável: aquilo que ainda não pode ser traduzido em sinal, índice ou ranking.
A operação algorítmica não nega o pensamento: ela o modela silenciosamente. Decide o que será escutado, onde será exibido, quanto tempo será visível, com que outras ideias será associado. Esta modelação preconfigura o campo das possíveis emergências simbólicas. O que se torna insustentável, então, não é a existência de vozes divergentes — mas a sua capacidade de inscrição. O descarte não se faz pela negação, mas pela ausência de estrutura que permita que algo emerja como problema.
A ontopolítica contemporânea não é mais disputada na esfera das ideias, mas na arquitetura das pré-condições técnicas da visibilidade simbólica. É aí que se decide quem terá lugar, que temas serão legíveis, que formas discursivas serão tratadas como pensamento e quais serão descartadas como desvio. A filosofia, se quiser manter-se como potência de inscrição e não como simples artefacto de circulação, terá de enfrentar esta estrutura. Não basta reclamar escuta: é preciso reconfigurar os dispositivos que decidem o que pode ser escutado.
Neste contexto, a crítica filosófica não pode permanecer no plano da representação. Deve operar como contraengenharia simbólica: desvelar os regimes de filtragem, desmontar as estruturas de antecipação, e propor espaços de hesitação que suspendam a lógica da preempção. O pensamento não pode ser compatível com a economia do previsível — porque pensar é precisamente rasgar essa previsibilidade. A filosofia só continuará a existir se for capaz de reinscrever o real fora das gramáticas que o precedem.
IV – A Falência da Mediação Filosófica
A filosofia cumpriu, durante séculos, uma função mediadora: entre o mundo e o pensamento, entre a linguagem e a ação, entre o acontecimento e a sua inteligibilidade. Essa mediação não consistia na simplificação nem na tradução, mas na criação de dispositivos conceituais que permitissem nomear o que irrompe sem forma11. O seu lugar era o da tensão: entre o visível e o dizível, entre o saber e o sensível, entre a norma e o possível. Pensar era suspender o automatismo do imediato, sustentar o inacabado, nomear o que ainda não se estabilizou como discurso.
No entanto, no presente regime discursivo, essa função encontra-se progressivamente desativada. A filosofia deixou de mediar — passou a circular. Já não opera como espaço de interrogação simbólica, mas como peça num ecossistema de respostas antecipadas. A linguagem filosófica, capturada por dinâmicas de agradabilidade, formatada por estilos de legibilidade automatizada, já não nomeia o real: apenas o replica sob formas compatíveis com os sistemas de reconhecimento.
A falência da mediação filosófica manifesta-se na impossibilidade de suspensão. O discurso não interrompe mais o curso do mundo; antes, acelera-o. O filósofo, em vez de nomear aquilo que ainda não possui forma, participa da retroalimentação contínua do que já foi decidido como relevante, visível ou discutível. A antecipação técnica substitui a hesitação simbólica12. Já não se pensa para tornar o mundo legível, mas para confirmar aquilo que já se tornou legível segundo os critérios operacionais vigentes.
Esta desativação simbólica não se reduz à obsolescência da filosofia nas esferas públicas. Trata-se de uma mutação da sua função operatória. O pensamento já não é convocado como mediação entre instâncias heterogéneas, mas como reforço de compatibilidades. O seu valor não está mais na criação de problemas, mas na otimização das respostas. O filósofo, convertido em comentador de atualidade ou curador de ideias afins, abdica da sua tarefa simbólica fundamental: sustentar a diferença ainda sem nome.
A apropriação da linguagem filosófica por regimes de resposta antecipada não é um acidente técnico: é uma consequência ontopolítica. Significa que os sistemas de produção discursiva já não toleram o intervalo necessário para que algo emerja como questão. A filosofia torna-se, assim, inofensiva: não por fraqueza, mas por funcionalização. Ao abdicar da mediação, abdica da sua potência disruptiva. Ao recusar a hesitação, dissolve-se no fluxo operacional que a neutraliza.
Este cenário exige que se repense não o conteúdo da filosofia, mas a sua posição no sistema simbólico contemporâneo. A sua falência não é um fracasso de ideias — é a perda da sua função de atraso. A filosofia não serve para responder mais rápido, mas para atrasar o suficiente para que o sentido possa ainda ser disputado. Recuperar a mediação é, portanto, recuperar o tempo do pensamento — o tempo do entre13, do impensado, do ainda informe. Sem esse tempo, tudo é resposta, e nenhuma resposta é verdadeira.
V – O Paradoxo da Intercomunicação entre Elites
Vivemos uma época em que a produção discursiva entre filósofos parece intensa e multifocal, mas a comunicação efetiva entre eles revela-se estruturalmente ausente. Há uma multiplicação de intervenções, publicações e exposições, mas essas vozes coexistem sem formar um campo comum de inscrição simbólica14. O diálogo, enquanto estrutura de coemergência15 entre pensamentos heterogéneos, foi substituído por um regime de enunciados paralelos, autorreferentes e estrategicamente posicionados. Trata-se, como já apontava Adorno, de um campo onde a troca de ideias se converte em paralelismo produtivo — em "acordos tácitos entre incompatibilidades não tematizadas".
Essa lógica instaura o que podemos nomear como arquipélago discursivo: cada filósofo fala desde a sua ilha, cercado por sistemas de referências que garantem consistência interna mas evitam qualquer risco de reorganização simbólica a partir do outro. A interlocução é substituída pela visibilidade cruzada: todos se referem, todos se posicionam, todos se encontram mas poucos se leem — mas ninguém se escuta enquanto diferença operatória16. O efeito é o da simultaneidade sem relação. Como em Deleuze, onde os sistemas diferenciais coexistem sem remissão a um centro, mas aqui sem intersecção funcional que permita emergência real.
A rede académica, nesse cenário, funciona menos como sistema partilhado de pensamento e mais como dispositivo performativo. Cada entrada textual cumpre a função de atualizar a presença de um nome, uma marca, uma identidade teórica. A filosofia, convertida em circuito de autovalidação simbólica, já não organiza uma comunidade de risco, mas um espaço de performance onde a legitimação se dá pela recorrência do gesto. Não se trata de pensar com o outro, mas de pensar diante dele — sob a lógica de uma coreografia discursiva que evita fricções.
A consequência é a erosão da ideia de comunidade filosófica como campo de inscrição mútua. O reconhecimento do outro enquanto fonte de perturbação simbólica é substituído por mecanismos de equivalência discursiva. Cada intervenção é acolhida desde que se mantenha dentro de zonas de compatibilidade estilística e referencial. A alteridade, aqui, não é combatida — é neutralizada por absorção estética. O dissenso verdadeiro — aquele que exige reorganização — cede lugar a um pluralismo de superfícies.
Essa fragmentação não deve ser confundida com diversidade. Ela representa antes uma falência de coesão simbólica. Em vez de confronto entre paradigmas, há um mosaico de posições que circulam sem interferência operatória. Atravessando essa rede, a filosofia corre o risco de tornar-se ecossistema de autoexpressão regulada — onde todos têm direito à voz, mas ninguém responde ao outro. Não por censura, mas por ausência de espaço simbólico partilhado.
Contra esse cenário, não basta reivindicar mais diálogo. É necessário reconstruir as condições ontológicas da interlocução filosófica. Isso exige deslocar o foco da publicação para a inscrição, da circulação para a copresença, da exibição de ideias para a produção de campos comuns de emergência simbólica. A comunidade não é um dado — é uma construção intensiva. E onde não há partilha de risco simbólico, não há pensamento comum: há apenas tráfego de enunciados sem lugar.
VI – A Urgência de uma Ética da Escrita
Num mundo saturado de emissão, escrever filosofia tornou-se, demasiadas vezes, uma estratégia de presença. O texto é pensado como extensão do autor, o autor como marca, a marca como capital simbólico. Neste ciclo, a escrita perde a sua alteridade. Deixa de ser abertura para o outro e passa a ser monumento de si. A urgência, portanto, não é moral, mas ontológica: repensar a escrita filosófica como gesto de inscrição — e não de reprodução.
Suspender o imediato é o primeiro movimento dessa ética. Contra a exigência de resposta rápida, contra a compulsão de visibilidade constante, escrever deve tornar-se um gesto de demora. Essa demora não é atraso técnico, mas condição operatória da inscrição simbólica. Só onde há suspensão do fluxo pode haver emergência do sentido. A escrita não deve acelerar o mundo, mas criar fendas no seu automatismo.
Escrever como ato de mundo significa, neste contexto, comprometer-se com a reconfiguração do real — e não com a manutenção do seu ruído. O texto filosófico não é comentário, nem adereço, nem identidade. É corte, inscrição, possibilidade. Ao inscrever uma diferença no corpo da linguagem, ele reabre o campo do simbólico. Mas isso só é possível se a escrita não buscar reconhecimento, mas descontinuidade.
A exposição ao indeterminado é o critério dessa nova escrita. Não se escreve para confirmar o que já se sabe, nem para consolidar uma posição. Escreve-se para tornar pensável o que ainda não tem nome, o que ainda não tem forma. A filosofia, enquanto prática de inscrição, exige esse risco: o de que o texto não sirva, não circule, não confirme. O de que ele perturbe.
A ética da escrita filosófica é, assim, uma ética do intervalo: entre o visível e o dizível, entre o possível e o permitido, entre o que se espera e o que irrompe. Uma escrita que não se submete à performance, nem à agradabilidade, nem ao prestígio. Uma escrita que volta a perguntar não "como ser lido?", mas "o que é preciso escrever para que algo possa, enfim, ser lido?"
Escrever, neste horizonte, é sustentar o mundo em abertura. Não como promessa, mas como prática. Não como utopia, mas como inscrição material de um sentido que ainda não se deixou capturar. A escrita filosófica, se quiser ainda ser tal, terá de recusar a função de resposta. Terá de tornar-se, de novo, um gesto que pensa.
Encerramento
Após um percurso de diagnóstico denso — saturação da linguagem, compressão algorítmica, falência das mediações simbólicas — o risco de interpretar o presente como colapso parece inevitável. E, no entanto, talvez este não seja o gesto mais rigoroso. Porque o pensamento que se pretende verdadeiramente filosófico não encerra na crítica o seu horizonte. Ele precisa, em algum ponto, de ser capaz de olhar o excesso não apenas como obstáculo, mas como índice de emergência.
É aqui que se impõe uma viragem. Se tudo parece exausto, saturado, em circuito fechado, talvez isso indique não o fim de um regime simbólico, mas o seu esgotamento funcional — o momento em que a estrutura anterior já não consegue integrar o que emerge. O que chamamos de ruído pode não ser falência, mas excedência. E o que parece dispersão pode ser, sob outro olhar, reorganização latente. A matéria não falha: transborda.
Segundo a Ontologia da Complexidade Emergente, esse transbordamento é precisamente o que inaugura um novo regime de inscrição. Toda reorganização simbólica começa quando o sistema anterior se torna incapaz de responder à complexidade que se acumula. É nesse momento — e apenas nesse — que uma nova gramática se torna possível. A filosofia, enquanto prática de inscrição, não tem por tarefa restaurar formas perdidas, mas escutar os sinais do que ainda não se formulou.
Sob essa luz, a emissão caótica de discursos, a proliferação de textos sem receção, a fragmentação da comunidade filosófica, tudo isso deixa de ser sintoma patológico para tornar-se campo de possibilidade. Não estamos diante de uma ausência de sentido, mas de um excesso ainda não simbolizado. E é este excesso — não o silêncio — que exige pensamento.
A filosofia, nesse novo limiar, não desaparece: muda de escala. Torna-se menos forma estável e mais prática emergente. Menos doutrina e mais gesto. E a escuta, longe de ser recuo nostálgico, passa a ser técnica de atenção ao que ainda não tem nome. Escutar, aqui, é acompanhar a reorganização da matéria simbólica — não pela espera, mas pela prontidão.
Talvez o excesso nos pareça ameaçador porque ainda usamos categorias pensadas para a escassez. Mas se aceitarmos que a desmedida é o terreno próprio da emergência, então o que vivemos não é o fim da filosofia — é a sua travessia. E pensar, agora, será menos definir do que sustentar o ainda informe. Menos controlar do que responder.
“O que não se escuta não desaparece — apenas insiste noutra frequência.”
Bibliografia
Adorno, Theodor W. 1966. Negative Dialektik. Frankfurt am Main: Suhrkamp.
Deleuze, Gilles. 1968. Différence et répétition. Paris: Presses Universitaires de France.
—— David Cota — Fundador da Ontologia da Complexidade Emergente ——