A Matéria Toma a Palavra
A computação quântica ocupa hoje um lugar ambíguo na imaginação científica e filosófica: simultaneamente promissora e opaca, concreta nos seus dispositivos experimentais e difusa nas projeções simbólicas que suscita. Tornou-se um plano de inscrição onde se projetam, sem distinção suficiente, expectativas de inteligência futura e resquícios de uma metafísica ainda não dissolvida. Mais do que entusiasmo ou recusa, o que se impõe é um gesto: reinscrever o quântico como realidade material operatória — não como promessa mística nem como fetiche tecnológico. Pode, em determinadas condições, tornar pensável o que antes se apresentava como incalculável. E é nesse intervalo que se revela a sua potência — e o seu risco
Na cultura contemporânea, confunde-se frequentemente velocidade com inteligência, complexidade com consciência, processamento com pensamento. Essa confusão intensifica-se na computação quântica, muitas vezes apresentada como o limiar de uma nova forma de mente ou como prenúncio de uma consciência técnica por vir. O problema não reside nas explorações experimentais, mas no léxico que as envolve: cede-se demasiado ao fascínio, abandona-se o rigor ontológico em favor do efeito retórico da exceção. Embora revolucionária, a computação quântica não opera segundo os regimes da cognição biológica. O cérebro humano — sistema eletroquímico classicamente modelável — funciona por fluxos iónicos, sinapses químicas e plasticidade local. Não há, até agora, evidência empírica de que coerência quântica, superposição ou emaranhamento desempenhem papel relevante nas suas funções. Invocar tais categorias é projetar uma analogia infundada.
Rejeitar a analogia entre o quântico e o cerebral não o desvaloriza — reinscreve-o no seu domínio específico. A computação quântica não é uma mente, mas uma técnica operatória. Processar não é pensar: é manipular estados, explorar probabilidades, estruturar combinações com densidade superior à da computação clássica. O seu diferencial reside na lógica de paralelismo probabilístico, não em qualquer interioridade emergente. Como toda ferramenta, só adquire sentido se acoplada a uma estrutura funcional mais ampla.
A Ontologia da Complexidade Emergente propõe aqui um critério decisivo: não há inteligência no substrato, apenas potencial operativo. Só quando esse potencial se reinscreve numa arquitetura simbólica — memória, decisão, modulação, plasticidade — é que se pode falar em emergência cognitiva. Confundir substrato e estrutura compromete a possibilidade de uma construção ontológica rigorosa. O qubit não é portador de sentido: o sentido emerge da sua integração num circuito funcional que articule cálculo, plasticidade e reinscrição simbólica.
Essa distinção é essencial para evitar dois desvios simétricos: o entusiasmo mágico e o ceticismo inerte. O primeiro vê no quântico uma chave ontológica total; o segundo ignora os efeitos reais que a computação quântica já produz em domínios como a simulação molecular ou a criptografia. Ambos falham em reconhecer o quântico como plano de reorganização material que só se torna inteligível quando reinscrito simbolicamente. O algoritmo de Shor, por exemplo, não pensa: mas reconfigura o regime de inteligibilidade do cálculo. Simulações moleculares quânticas não interpretam, mas geram estados que desafiam os limites computacionais clássicos. Modelos híbridos de IA e computação quântica não se aproximam da mente — apenas ampliam a variabilidade operatória.
Pensar com esperança não é ceder à ilusão, mas sustentar a possibilidade. E isso implica reconhecer que o quântico pode desempenhar um papel crucial na arquitetura de sistemas simbólicos futuros — não como origem de sentido, mas como catalisador de novas formas de estruturação. A sua função não é dizer, mas operar. E, ao fazê-lo, alarga os horizontes nos quais linguagem, decisão e interpretação se tornam possíveis.
Se emergirem formas de inteligência radicalmente novas, não será por velocidade de processamento, mas por termos conseguido acoplar regimes distintos — físico, lógico, simbólico — num sistema funcional coerente. O quântico poderá, nesse cenário, desempenhar um papel essencial: não por pensar melhor, mas por expandir o campo do pensável.
A ética filosófica do nosso tempo não requer fé no quântico, nem temor. Requer rigor: recusar metáforas precipitadas, escutar a matéria, assumir responsabilidade conceptual. A computação quântica não dissolve a razão — mas redistribui o campo onde ela pode emergir reorganizada. E toda reorganização simbólica exige escuta, discernimento e cuidado. A esperança não está na máquina, mas no gesto. O que se transforma não é a matéria — é a relação que estabelecemos com os seus regimes de variação.
A força do quântico não reside na consciência, mas no seu excesso operativo, que desafia formas simbólicas estabelecidas e convoca novas inscrições. Quando a matéria opera para além das formas disponíveis, não há colapso — há limiar.
Ao longo da história do pensamento, toda travessia para além dos esquemas simbólicos disponíveis foi interpretada como ameaça. Assim também aqui: a hipótese de que o quântico desorganizasse o simbólico foi formulada como risco. Mas se o simbólico colapsasse por excesso, seria, por definição, estrutura defensiva — o que contradiz a sua natureza emergente e instável.
Importou, portanto, deslocar a linguagem do risco e reconhecer no excesso a condição mesma da emergência simbólica. Quando uma técnica — como a computação quântica — produz variações ainda não reinscritas, não testemunhamos um colapso, mas a latência de um novo campo. O simbólico ainda não chegou — mas será convocado. Pois o simbólico não antecede: responde. Emerge localmente como forma diante de um real que já opera.
Esta viragem é decisiva: o simbólico não é estrutura a priori, mas consequência contingente do excesso material. Aquilo que parecia ameaça era condição. O excesso não rompe — convoca. Não dissolve — reorganiza. E entre as múltiplas formas possíveis, apenas algumas serão reinscritas como campos estáveis. As outras permanecerão como ensaios operatórios, ainda não simbolizáveis.
Esta análise não é ilustrativa — é operatória. O pensamento não partiu de um princípio, mas de um excesso. E foi forçado a reorganizar-se. Essa é a racionalidade do excesso: ele obriga o pensamento a acontecer.
Assim, podemos afirmar: não há risco simbólico no quântico. Há um intervalo onde o simbólico ainda não chegou — e uma exigência de escuta. O simbólico não colapsa — transforma-se. E é convocado sempre que a matéria opera além das formas disponíveis.
Não se trata de concluir, mas de verificar: O pensamento emerge do excesso — não da rutura. O simbólico não é estrutura a defender, mas campo em reorganização. E o quântico, como toda potência que excede, não ameaça — convoca. Convoca o pensamento, a inscrição, e o risco verdadeiro: o de pensar para além do que já sabemos pensar.
Este ensaio não propõe uma crítica à computação quântica, mas uma ética da escuta material. Uma filosofia capaz de acompanhar o excesso como germinação, não como erro. Uma ontologia que sabe que o real não colapsa — apenas insiste. E que o simbólico não se protege — apenas responde.
“A matéria não fala — mas impõe escuta; e onde há escuta, há já início de mundo.”