O Começo Que Se Quis Corte
A modernidade reconfigura a gramática da origem: já não a pensa como substância fixa ou modelo eterno, mas como rutura capaz de limpar o terreno e instaurar um novo regime de verdade. O início deixa de ser a permanência imóvel dos clássicos e torna-se um gesto de separação — a fundação é tanto mais sólida quanto mais se afasta do que a precede. Entre a herança antiga e o corte moderno, há um deslocamento na relação entre tempo e verdade: se o pensamento clássico subordinava o devir a um princípio imóvel, o moderno subordina-o a um ponto inaugural que se quer imune à contaminação da história. Mas o traço comum persiste — a necessidade de um lugar seguro fora da variação —, apenas transposto do “fora do tempo” para o “antes do tempo” válido.
Em Descartes, este corte assume a forma de uma operação metódica de demolição. A dúvida hiperbólica não é mero ceticismo, mas um procedimento cirúrgico para expurgar qualquer traço de incerteza herdada. O cogito não é eterno como o Ser de Parménides, mas partilha com ele a pretensão de imunidade: ao reduzir-se ao ato de pensar que se pensa, reclama uma solidez que nenhum facto histórico pode abalar. O corte cartesiano é, assim, menos um abandono da tradição do que uma sua reescrita radical: ao rejeitar a ontologia substancialista, preserva a exigência de um fundamento incontaminado.
Galileu traduz esta rutura para o plano da relação com a natureza. A matematização dos fenómenos, a substituição das qualidades sensíveis pelas quantidades mensuráveis e a experimentação controlada estabelecem um novo pacto entre mente e mundo. A ordem que antes residia nas formas eternas passa a residir nas leis invariáveis da física. Newton herdará e universalizará esta lógica: a gravitação universal e as leis do movimento não apenas descrevem, mas garantem uma ordem absoluta que, embora concebida como nova, cumpre a função do antigo “motor imóvel” — sustentar a regularidade do real a partir de um núcleo imutável, agora escrito em linguagem matemática.
Kant desloca a origem para um plano ainda mais protegido da variação: o transcendental. Aqui, a fundação não é um instante no tempo nem uma lei física, mas um conjunto de condições universais e necessárias — espaço, tempo, categorias — que moldam qualquer possível experiência. Este corte é mais radical porque não se limita a afastar o passado; afasta o próprio devir empírico como fonte de legitimidade. Mas a exigência de imutabilidade mantém-se: as formas puras não nascem, não se transformam, não morrem; garantem, silenciosamente, a estrutura do que pode ser conhecido.
Ao olhar de perto, percebe-se que a modernidade não rompe totalmente com a herança clássica: a obsessão por um fundamento imune à mudança apenas muda de posição. A origem deixa de estar na eternidade, mas continua a ser pensada como exterior à história — seja no ponto inaugural do cogito, nas equações universais ou nas formas a priori. A rutura com o passado não é abandono da lógica do fixo, mas sua reconfiguração.
A Ontologia da Complexidade Emergente recusa a pretensão de corte absoluto. Toda “fundação” é produto de rearranjos materiais e simbólicos que a precedem; toda separação radical é, na realidade, sutura de elementos herdados. O que se quer início puro já é atravessado por fluxos e resíduos que o antecedem. A purificação epistemológica é um artifício localizado, não um começo que se isola da teia contínua da realidade. O fundamento não é instante inaugural, mas compatibilidade transitória — uma organização que dura enquanto dura o seu suporte material e a sua inscrição simbólica.
Esta leitura não invalida o gesto moderno, mas impede a sua mitificação. Sem o ensaio de cortes, a modernidade não teria aberto as vias de inteligibilidade que permitiram a ciência contemporânea e a crítica filosófica subsequente. Mas compreender que todo o corte é também dobra, todo o começo também prolongamento, é condição para não repetir, na era do fluxo, a mesma ilusão de absoluto. E é precisamente aí que se prepara a passagem para o próximo movimento: quando o desejo de corte dá lugar ao fascínio pelo devir ilimitado, o risco já não é o da rigidez, mas o da dispersão total.
"Não há corte que não seja também costura;
todo começo carrega o peso daquilo que pretende deixar para trás."
—— David Cota — Fundador da Ontologia da Complexidade Emergente ——