O Excesso Como Matriz Criativa
Desde a Antiguidade, o problema do motor da mudança atravessa a história do pensamento como interrogação persistente. Para Heraclito, a mudança é o fluxo inseparável do real; para Parmênides, apenas aparência a ser superada pela estabilidade do ser. Aristóteles formaliza a passagem da potência ao ato, subordinando-a a uma teleologia intrínseca. No estoicismo e no neoplatonismo, a variação é regida por um logos cósmico, princípio ordenador que impede a contingência de escapar à razão. A modernidade mecânica, com Descartes e Newton, reduz a mudança a transformação mensurável segundo leis invariantes. Kant desloca o problema para as condições internas do sujeito; Hegel converte a transformação em negatividade dialética, cujo desfecho é sempre síntese. No século XX, estruturalismo, cibernética e funcionalismo identificam-na com a adaptação de sistemas a perturbações. A pós-modernidade, ao desconstruir grandes narrativas, muitas vezes dissolveu o próprio conceito de motor, substituindo-o pelo fragmento e pela contingência não articulada.
A Ontologia da Complexidade Emergente recusa tanto a linearidade destas narrativas quanto a sua dependência de negatividade, finalidade ou exterioridade. O que nela se afirma é que a mudança não advém de crise, falha ou telos, mas de um excesso imanente à própria organização material. Esse excesso não é sobra inútil, ruído ou desperdício, mas sobreposição de compatibilidades locais cuja densidade ultrapassa o necessário para sustentar a configuração atual. É um transbordamento operatório que não rompe a forma por defeito, mas desloca o seu regime estabilizado pela superabundância, instaurando novas condições de organização. “Matriz criativa” aqui não designa substância produtora, mas efeito relacional: um modo de operação que, pela própria intensidade, abre espaço para configurações não previstas no regime presente.
Ao contrário de leituras que imaginam um reservatório prévio de potencialidades, o excesso não é anterior à forma — é a intensificação do seu próprio operar, o ponto em que a rede de relações se multiplica a tal grau que a forma deixa de poder mantê-las sem se reorganizar. Não há fundo preservado, não há virtualidade à espera: há apenas a ação imanente de compatibilidades que se reconfiguram.
Assim, o excesso distingue-se tanto da entropia como da “justa medida” aristotélica: não é degradação nem desvio, mas matriz criativa enquanto efeito emergente de interações. Na química prebiótica, o acúmulo local de interações reativas gera cadeias inéditas; nos ecossistemas, a biodiversidade que excede o mínimo de estabilidade não apenas mantém uma ordem transitória, mas abre espaço a novas combinações. Nestes casos, o excesso não preserva o que existe — engendra o que ainda não se inscreveu.
Esta formulação desloca a questão do motor da mudança — entendido aqui não como agente, mas como condição operatória — para fora do paradigma da reação. Não se trata de resolver problemas preexistentes, mas de reorganizar o presente sob a intensidade de um “mais-que-basta” material. Quando um sistema opera apenas no seu modo operatório estabilizado, não há margem para novidade; é no que transborda o regime atual de compatibilidades que reside a capacidade de invenção.
O excesso, aqui, não é reserva para futuro incerto: é ato presente, motor — enquanto efeito de reorganização — já em curso. Não se guarda — atua. A plasticidade que dele resulta não é luxo, mas expressão da própria condição ontológica da matéria enquanto campo de variação. A mudança, compreendida deste modo, não é ascensão, recuperação nem fuga: é inflexão interna, gerada por uma operatividade que se ultrapassa a si mesma.
Afirmar o excesso como matriz criativa é, por fim, recusar a imagem de um mundo que se move apenas por carência ou destino. É reconhecer que, no ponto em que uma configuração se vê atravessada por mais relações do que pode conter, o real reorganiza-se — sem plano, sem origem e sem promessa — porque persiste em exceder-se.
"Nada move o real — ele apenas se reorganiza onde já não cabe em si."
—— David Cota — Fundador da Ontologia da Complexidade Emergente ——