Emergência Sem Linguagem

A emergência de formas e organizações materiais não depende de qualquer mediação linguística ou simbólica. Antes de existir qualquer sistema capaz de nomear, descrever ou representar, a matéria já se reconfigura, produzindo padrões e funções sem autor nem código. Esta constatação rompe com a tendência persistente de supor que a ordem ou a complexidade implicam, desde a origem, algum tipo de inscrição ou mensagem.

No plano que nos interessa, “emergência” significa reorganização funcional local: um conjunto de interações cuja configuração dá origem a propriedades ou comportamentos não redutíveis aos elementos isolados que os compõem. Essas propriedades não precisam ser previstas nem registadas para se constituírem — elas emergem no próprio jogo das forças e compatibilidades materiais.

A Ontologia da Complexidade Emergente recusa tanto a redução da emergência ao simbólico quanto a inversão simétrica que dissolve a especificidade do simbólico ao estendê-lo a qualquer relação física. Entre linguagem e matéria há um intervalo ontológico claro: a primeira é uma exceção operatória; a segunda, base constante e ininterrupta de novas formações.

Para compreender a emergência sem linguagem, é necessário distinguir com precisão três noções frequentemente confundidas: padrões materiais, comunicação e linguagem.

Padrões materiais são configurações que resultam da interação física, química ou biológica de elementos, produzindo estruturas, ritmos ou regularidades funcionais. Esses padrões não significam nada fora da sua própria operação: a cristalização cúbica do sal, as franjas coloridas de um filme de óleo na água ou a formação de dunas sob o vento são efeitos do jogo material de forças, não mensagens codificadas.

Comunicação, no sentido material, refere-se à transferência de energia ou sinais físicos entre sistemas — um fluxo que pode alterar estados ou desencadear respostas, mas que não implica um código simbólico. A liberação de substâncias químicas por bactérias para coordenar comportamento ou a propagação de um sinal elétrico num tecido nervoso são exemplos de comunicação material sem linguagem.

Linguagem, no sentido estrito adotado pela OCE, é um regime simbólico recursivo: um sistema que não apenas representa relações materiais, mas que pode operar sobre os próprios signos, reorganizando-os e atribuindo-lhes novas funções. A linguagem exige inscrição e legibilidade para um sistema capaz de manipular essa inscrição — condição ausente em todos os processos aqui analisados.

Esta distinção é decisiva: chamar “linguagem” a qualquer padrão ou troca de sinais dissolve a especificidade do simbólico e impede pensar o que nele é singular. É essa clareza terminológica que mantém separadas a emergência material e a emergência simbólica.

Muito antes de qualquer nomeação, a matéria organiza-se em formas e funções que não dependem de inscrição. A formação de estrelas a partir do colapso gravitacional de nuvens de gás, a cristalização espontânea de sais minerais ou a auto-organização de padrões químicos na reação de Belousov–Zhabotinsky são processos onde a ordem emerge diretamente das interações locais — sem projeto, representação ou mensagem.

No plano biológico, colónias de bactérias coordenam comportamentos coletivos complexos — como a formação de biofilmes — por interações químicas e físicas que modificam o ambiente local. Estas respostas não envolvem qualquer sistema de signos; são ajustamentos funcionais resultantes da compatibilidade entre processos celulares e condições ambientais.

Na história da filosofia, alguns pensadores reconheceram que a ordem podia surgir sem intervenção exterior ou código prévio. Heraclito, ao pensar o cosmos como fluxo em tensão, percebia que as regularidades não dependiam de um artesão externo. Spinoza, com a sua conceção de natureza naturante, via a ordem como efeito imanente da potência da matéria. No entanto, mesmo nestas conceções, persistiu a inclinação para ver sentido ou mensagem embutidos na estrutura do mundo — seja na forma de logos universal, harmonia pré-estabelecida ou teleologia implícita.

A OCE retoma o núcleo imanentista destas intuições, mas remove a camada interpretativa que lê nos padrões materiais uma linguagem oculta. O padrão não fala; ele apenas é, enquanto efeito provisório de interações materiais. A leitura de um código prévio é um gesto simbólico posterior — e é precisamente essa distância que aqui se preserva.

Uma das confusões mais persistentes nas abordagens contemporâneas da complexidade é a tendência de estender a noção de linguagem ou de signo até abarcar qualquer padrão ou interação. A biosemiótica totalizante, por exemplo, ao expandir a semiose a todos os processos vitais, dissolve a distinção entre estrutura funcional e regime simbólico. Hoffmeyer, Sebeok e outros procuram mostrar que toda a vida é, de certo modo, interpretação de sinais. O problema não está em reconhecer que a vida opera por interações e respostas, mas em equiparar essas interações a uma linguagem, como se a comunicação material fosse já inscrição simbólica.

Essa universalização ecoa certas leituras pós-estruturalistas que, inspiradas em Saussure e Peirce, ampliam a semiose até tornar o real inseparável da rede de significações. Derrida, com a sua “escrita generalizada”, e Deleuze, na leitura rizomática das conexões, apontam para uma materialidade do signo, mas frequentemente deixam em aberto se algo no real escapa a esse regime.

A OCE considera problemática essa universalização. Primeiro, porque converte a capacidade específica do simbólico — operar recursivamente sobre os signos — numa propriedade indistinta da matéria. Segundo, porque enfraquece a análise dos processos de inscrição ao tratá-los como inevitáveis ou omnipresentes. Quando tudo é signo, nada é signo em sentido rigoroso: perde-se a possibilidade de distinguir entre o que apenas funciona e o que também é simbolizado.

Ao recusar esta projeção universal da semiótica, a OCE preserva o intervalo ontológico entre emergência material e inscrição simbólica. Essa preservação não implica hierarquia nem separação absoluta, mas reconhece que a linguagem não é atributo difuso da natureza: é uma raridade operatória, não a gramática invisível do cosmos.

Para a OCE, a emergência de formas e organizações materiais é um fenómeno ontologicamente autónomo. A matéria reorganiza-se sem necessidade de linguagem, e as propriedades funcionais que daí resultam não requerem mediação interpretativa para existir. O simbólico é exceção rara, surgindo apenas quando há capacidade de inscrição recursiva de diferenças. Até esse ponto, a organização material pode ser extremamente complexa, mas opera fora do regime da linguagem.

Esta posição distancia-se tanto do realismo ingênuo, que ignora o papel da inscrição na inteligibilidade, quanto do idealismo semiotizante, que vê todo o real como já inscrito. Reconhecer que há complexidade sem simbolização protege a especificidade da linguagem sem fazer da sua ausência uma deficiência. A não-linguagem não é um estado menor; é um regime distinto, onde há função mas não há sentido.

A inscrição é sempre possível, mas não necessária. A sua ocorrência não altera a natureza material do que a precedeu, apenas acrescenta uma nova camada operatória.

Dois erros devem ser evitados. O primeiro é confundir ausência de linguagem com ausência de comunicação material: muitos sistemas — como fungos que libertam esporos ou abelhas que ajustam a temperatura por vibração — trocam sinais eficazes sem operar com signos. O segundo é projetar a linguagem humana como medida universal da complexidade, apagando tanto a diversidade de comunicações materiais quanto a possibilidade de inscrições não-humanas.

A OCE recusa ambos. Reconhece a diversidade das comunicações materiais e preserva a distinção qualitativa do regime simbólico, sem hierarquia ontológica, mas sem dissolução conceptual.

Compreender a emergência sem linguagem é reconhecer que a matéria não aguarda ser dita para operar. Os padrões, formas e funções que nela surgem são respostas imanentes a tensões e compatibilidades locais. Preservar este campo pré-simbólico evita tanto a ilusão de um cosmos já escrito quanto a pobreza de um real mudo por essência.

O que acontece quando um desses padrões entra num regime capaz de inscrevê-lo? A resposta não é inevitável nem linear; exige outro plano de análise — aquele em que o simbólico se torna possível sem apagar o que o precede.


"A matéria inventa formas
antes que alguém possa nomeá-las."


—— David Cota — Fundador da Ontologia da Complexidade Emergente ——