Gesto Sem Autor
A razão chegou tarde. Não a um acontecimento, mas a uma composição que já se fazia sem nome. O mundo, antes de qualquer cognição, já se inclinava, já se dobrava, já insistia. Mas a razão, ao surgir como instância de organização simbólica, interpretou esse anterior não como condição operatória, mas como um enigma a resolver. Em vez de escutar o que a antecedia, interrogou-o como se estivesse à sua espera. E como toda a sua estrutura se apoia na necessidade de coerência interna, viu no que a precedia não uma matriz de emergência, mas um intervalo ilegítimo — algo que, por não responder, parecia carecer de razão.
É neste ponto que a razão se transforma em obstáculo. Não por insuficiência, mas por excesso de fidelidade a si mesma. Tenta pensar o que não lhe é dirigido. Aplica categorias que nasceram em corpos já organizados — como identidade, causalidade, finalidade — a um regime que nunca lhes obedeceu. E assim, tudo o que não entra nos seus esquemas aparece como rutura, como falha, como ausência. Mas há um erro nesse diagnóstico: o que a razão chama de ausência não é vazio — é outra ordem. Um regime de operações sem plano, de torções sem intencionalidade, de consistência sem forma prévia.
A origem não esperava ser pensada. Não surgiu por ter sido invocada, nem por responder a uma estrutura. Aconteceu como incidência mínima, como variação que se manteve, como articulação que não se desfez. Não foi um início no sentido em que algo se inicia. Foi uma inflexão, uma persistência local de matéria em reorganização. Nada disso foi escolhido. Nada disso foi decidido. E, no entanto, tudo isso aconteceu. A emergência do real não pertence ao regime do intencional. Pertence ao regime do que funciona — e, por funcionar, se torna durável. A sua consistência não é garantida por um princípio, mas por uma eficácia operatória que sobrevive ao acaso.
A filosofia, ao tentar pensar esse regime, tropeçou na sua própria arquitetura. Mesmo quando rompe com sistemas prévios, conserva a compulsão de localizar, justificar, organizar. Mesmo a desconstrução, a negatividade ou a contingência, mantêm uma economia do antes: tudo é derivação, desvio, adiamento. Quase ninguém pensou que pudesse haver uma operação que não proviesse de qualquer estrutura. Que não nascesse da falta, da potência ou do erro. Um movimento que não repara nada — porque nada estava danificado. Que não inicia — porque não sucede. Que não responde — porque não houve chamada.
Esse movimento é o que se pode chamar uma inscrição anterior ao signo. Não uma marca voluntária, mas uma modulação da matéria que, ao reorganizar-se, produz diferença sem intenção. A inscrição anterior ao signo é o limiar onde o real começa a reter formas antes de lhes dar nomes — onde a variação se transforma em consistência sem ainda ser símbolo, mas já instaurando distinção. A sua natureza não é expressiva, mas operatória. A inscrição não representa nada: apenas estabelece um regime onde a diferença deixa de se dissipar imediatamente e passa a durar.
A razão, nesse cenário, não desaparece nem colapsa. Mas vê o seu lugar descentrado. Deixa de ser origem e torna-se derivação. Só pode operar porque já houve operação. Só pode organizar porque já houve persistência. Só pode pensar porque já houve forma. A sua tarefa, então, não é a de justificar o início, mas a de reconhecer que chegou tarde — e que pensar, no seu caso mais radical, é escutar o que já se fazia sem ela.
O nascimento do universo não foi resultado de uma decisão nem de um desequilíbrio. Não houve corte, nem substância inaugural. O que houve foi matéria que, ao variar, encontrou um ponto de retenção. Uma pequena torção que durou mais do que o instante que a fez surgir. Essa duração não foi temporal. Foi funcional. Foi uma relação que, sem sujeito, organizou uma consistência. E nessa consistência, tudo o que hoje chamamos mundo começou a reorganizar-se.
Mas não houve começo. Houve apenas operação. Uma dobra que não se sabia dobra. Uma inscrição que não se referia a nada. Um fazer que não sabia que fazia — e que, no entanto, persistiu. Esse acontecimento não foi dramático, nem central, nem metafísico. Foi apenas real: real no sentido daquilo que, sem intenção, se instala e se repete.
Pensar esse plano não é descrevê-lo. É reconhecer que pensar, neste caso, não é elaborar, mas acolher. Há materialidade antes de qualquer sistema. Há acoplamentos antes de qualquer observação. Há instabilidade que se reorganiza sem esperar reconhecimento. E é nessa reorganização cega que o universo começa a fazer-se — não por ter sido criado, mas por se ter tornado possível.
Porque a origem não espera, não responde, não representa, apenas se inscreve, sem memória, sem vontade, sem figura, mas com o poder de fazer durar aquilo que, por um instante, quase se perdeu.
"A origem não começa — mantém-se sem saber que persiste."
—— David Cota — Fundador da Ontologia da Complexidade Emergente ——