O Impossível De Medir
O universo não se inicia numa dimensão temporal única. Começa precisamente onde as categorias temporais convencionais se dissolvem. A origem, tal como hoje é pensada no interior da cosmologia contemporânea, não é um evento sequencial — é um colapso das categorias que tornam qualquer manifestação temporal possível. O chamado Big Bang não é uma explosão, nem uma criação, nem sequer um acontecimento num sentido clássico: é o limite onde toda medida se torna inaplicável. É aí, nesse excesso ainda sem forma, que se instala a primeira tarefa filosófica: não a de explicar, mas a de escutar o impossível que sustenta o real.
Durante décadas, a física avançou na direção da origem. A radiação cósmica de fundo, a expansão das galáxias, a densidade energética do universo inicial — tudo parece apontar para um estado extremo de compressão e temperatura. Mas ao investigar o ponto onde a nossa capacidade de mensurar a temporalidade desfaz-se — tudo se dissolve: o espaço perde estrutura, a temporalidade transforma-se, a causalidade linear evapora-se. A física detém o gesto de aproximação. Mas é precisamente nesse limite que se inicia o gesto filosófico — não para explicar o irrepetível, mas para reinscrevê-lo como fratura operatória. Ali, a própria noção de ponto, de ordenamento e de continuidade desfaz-se. O real, nesse estado, transcende a mensurabilidade.
É precisamente esse colapso da medição que funda o problema filosófico da origem. Porque medir não é apenas contar: é inscrever, é estabilizar uma diferença numa escala simbólica. Medir é impor contabilidade a um mundo que ainda não se ofereceu como número. É domesticar o excesso na ficção do marco, fixar o que ainda não se quis fixar, traduzir o que ainda não se organizou. Toda medição exige um referencial, um corpo, uma duração repetível. Mas no princípio do universo, nenhuma dessas condições estava presente. Havia apenas densidade incomensurável, energia sem forma, um real que ainda não podia ser nomeado porque nenhuma linguagem fora ainda inscrita.
Esta ausência de referência não é ausência de realidade. O que havia não era vazio, porque o vazio já pressupõe um regime de ausência, e aqui não havia nem presença nem ausência: apenas potência sem forma. Não se tratava de caos mitológico nem de "nada", mas de instabilidade material ainda sem inscrição. E é nesse campo sem forma que emerge o gesto inaugural da filosofia. Não como descrição de um antes, mas como inscrição simbólica do que ainda não pode ser simbolizado. A origem não pode ser representada — não porque seja mistério, mas porque é anterior a qualquer gramática da forma. Não há observador, não há ritmo, não há escala. O universo não teve um início pontual: começou quando a própria noção de um evento discreto no tempo se dissolveu.
O erro maior reside em conceber o Big Bang como um evento inserido numa sucessão, como se existisse uma progressão temporal pré-definida. Mas o que a física mostra — e a filosofia reinscreve — é que o início não foi um ponto, mas uma disjunção ontológica absoluta: não havia medida porque não havia diferença ainda estabilizada. O que chamamos "origem" é apenas o nome tardio de um campo de forças que não pode ser reduzido a um relato, nem a uma fórmula, nem a uma imagem. Como sugerem alguns modelos de gravidade quântica, neste limiar inicial o espaço-tempo dissolve-se em flutuação não métrica: já não há geometria, apenas tensão.
Esse campo não era ausência, nem repouso. Era excesso sem forma, matéria em perturbação ainda sem inscrição, sem temporalidade definida, sem localização. Não caos, no sentido de desordem, mas instabilidade sem referencial simbólico. O que estava ali não podia ser visto, nem medido, nem concebido através de uma temporalidade linear. E no entanto, era real.
A filosofia da complexidade emergente propõe-se pensar exatamente esse ponto: não como fim da linguagem, mas como o seu ponto-zero operatório. Não como ausência de inteligibilidade, mas como inteligência sem âncora — sem código, sem espelho, sem sistema. A origem não pode ser conhecida, mas pode ser reinscrita como o que interrompe a transparência do mundo. Não para a negar — mas para reconhecer que o mundo não é dado: é insurgente.
Toda tentativa de medir a origem é já, inevitavelmente, uma projeção simbólica. Mas essa projeção não deve ser evitada: deve ser reconhecida como operação criadora. A tarefa filosófica não é refutar a ciência, mas levar o seu gesto ao limite — e nesse limite, escutar o que ainda não foi transformado em forma. O que não pode ser medido não é o vazio da ignorância, mas a intensidade ainda não estabilizada da emergência.
A origem do universo não está "por descobrir". Está por reinscrever. E essa reinscrição não exige mais dados, nem melhores telescópios, nem fórmulas mais complexas. Exige uma filosofia capaz de pensar o real como aquilo que se inscreve mesmo sem condição simbólica prévia. Uma filosofia que aceite que a origem não teve um início convencional, que a temporalidade se manifestava de forma distinta, que o mundo que hoje conhecemos é apenas o efeito residual de uma emergência que ainda não podia ser narrada.
“O impossível de medir é o solo onde o real
ainda não consentiu forma — mas já exige inscrição.”
—— David Cota — Fundador da Ontologia da Complexidade Emergente ——