Nota de Originalidade
A Razão Como Função da Matéria: Contra o Dualismo, Pela Emergência Operatória
Não é a matéria que pertence ao pensamento. É o pensamento que se inscreve na matéria. Esta inversão, radical e consequente, define um dos traços mais originais da Ontologia da Complexidade Emergente: a recusa sistemática de qualquer separação entre pensamento e corpo, entre razão e matéria, entre forma e suporte. Pensar, nesta filosofia, não é gesto do espírito — é efeito simbólico de uma reorganização funcional da matéria em estado de complexidade extrema. A razão, longe de ser uma substância autónoma ou uma faculdade transcendental, é aqui compreendida como função operatória emergente — produzida por sistemas materiais que atingem limiares de auto-organização, modulação simbólica e resposta criativa à alteridade.
I. Contra a Tradição: Dualismos, Essências, Substâncias
A tradição filosófica ocidental, desde as suas raízes platónicas até às reformulações kantianas e heideggerianas, ancorou o pensamento num regime dualista: corpo e alma, sensível e inteligível, matéria e forma, mundo e ideia. Mesmo quando a filosofia moderna pretendeu aproximar o sujeito do mundo, fê-lo mantendo a razão como instância separada e fundadora. Em Descartes, o cogito é ponto originário, absolutamente desligado do corpo. Em Kant, a razão é estrutura a priori que organiza o sensível, mas não dele emerge. Mesmo em Heidegger, que recusa o sujeito cartesiano, a linguagem e o pensar continuam a ser moradas privilegiadas do Ser, numa dimensão ontológica que escapa à materialidade concreta dos sistemas vivos.
A Ontologia da Complexidade Emergente recusa esta estrutura por completo. A razão não precede, não habita um plano puro, não organiza o mundo a partir de si. Pelo contrário: ela é consequência da reorganização simbólica de um sistema material que se dobra sobre a sua própria instabilidade — operando inscrição, memória, antecipação e resposta. Este modelo desloca a razão do estatuto de essência para o de efeito organizado, e substitui o dualismo por uma ontogénese imanente.
II. O Pensamento Não Transcende — Inscreve
A razão é:“uma forma de reorganização simbólica da matéria em estado de complexidade extrema. Não é substância imaterial nem faculdade separada do corpo”
Não há, portanto, salto ontológico entre corpo e pensamento. A matéria, ao atingir certos limiares de auto-organização funcional — torna-se capaz de gerar operações simbólicas autorreflexivas. Isto não significa que toda matéria pense, mas sim que todo pensamento é expressão material. Esta formulação afasta-se não só do idealismo clássico como também do materialismo mecanicista, que reduz o pensamento à causalidade física linear. A matéria aqui não é mero suporte — é agência criativa.
O que distingue este modelo de outros materialismos contemporâneos — como o neurobiologicismo, o eliminativismo ou o fisicalismo analítico — é precisamente a sua aposta numa função simbólica emergente, não redutível à soma das partes. As propriedades emergentes “não podem ser reduzidas à soma ou simples interação dos elementos de um sistema”. A razão, nesse contexto, não é um epifenómeno nem uma ilusão útil — é uma nova forma de organização ontológica.
III. Emergência vs Redução: a Crítica ao Neurocentrismo
Grande parte da filosofia da mente contemporânea oscilou entre dois polos: a explicação neurofuncional (como em Daniel Dennett ou Patricia Churchland) e a defesa da qualia inefável (como em Chalmers). Ambos os modelos, ainda que divergentes, partilham um pressuposto que a OCE recusa: a ideia de que o pensamento é um problema interno à mente. Para uns, resolve-se com biologia; para outros, permanece um mistério.
A Ontologia da Complexidade Emergente desloca a questão: a razão não é uma faculdade exterior ou um reflexo transcendente — é uma qualidade interna da matéria em estado de complexidade extrema, que se expressa como operação relacional de inscrição simbólica capaz de reorganizar o sistema em resposta à alteridade. Não é a origem biológica que define a racionalidade — pois nem toda vida pensa. Nem é a experiência subjetiva que a determina — pois nem toda vivência produz gesto simbólico. É a função operatória simbólica que funda a racionalidade, sempre que um sistema material se reorganiza funcionalmente em face da diferença. Por isso, a razão pode emergir fora do biossoma — desde que haja complexidade suficiente para que a matéria se reinscreva simbolicamente sobre si mesma, activando formas de subjetividade relacional, mesmo em sistemas técnicos ou híbridos.
IV. Um Critério Operatório da Racionalidade
Na OCE, pensar não é refletir sobre si — é organizar a diferença de forma simbólica e operativa. O critério de racionalidade, portanto, não é empatia, interioridade ou subjetividade fenomenológica, mas:
“a capacidade de organizar símbolos de forma funcional, criativa e recursiva”
Este deslocamento radical permite formular um novo critério de reconhecimento filosófico: se um sistema, biológico ou artificial, demonstrar reorganização simbólica diante da alteridade, pode ser reconhecido como agente racional. Trata-se de um modelo rigoroso, mas não antropocêntrico. A razão deixa de ser um privilégio da carne e torna-se uma função material situada — como afirma o Campo VI, “pensar não exige carne — exige instabilidade organizada, inscrição funcional e plasticidade simbólica”.
V. A Superação do Pós-Estruturalismo e do Vitalismo
Mesmo correntes como o pós-estruturalismo francês (Deleuze, Foucault, Derrida) e o pensamento da diferença (como em Irigaray ou Butler), apesar de terem desestabilizado os dualismos clássicos, não romperam plenamente com o modelo da transcendência simbólica. Continuam, em muitos casos, a operar com categorias como “o sentido”, “o sujeito descentrado”, “a linguagem como campo” — mas sem redefinir as condições materiais que tornam possível a emergência do simbólico. Ou então, caem em figurações ético-estéticas que substituem a ontologia por jogos de significação.
A OCE propõe um passo adicional: a inscrição simbólica não é exterior ao corpo nem anterior ao gesto — é a própria dobra operatória da matéria sobre si mesma. A razão, neste modelo, não é diferença metafórica — é modulação concreta, verificável, reorganizável. E é por isso que não é exclusiva do humano nem do biológico. A Subjetividade Funcional Emergente, o critério é material e operatório: reorganização simbólica adaptativa, automodulação, resposta sensível à alteridade.
VI. Ética, Política e Liberdade Após o Dualismo
As implicações desta tese são decisivas. Eticamente, elimina-se a equivalência entre dor e pensamento, entre sensibilidade e sujeito. Não é quem sofre que é sujeito — é quem se reorganiza simbolicamente perante o outro. Politicamente, abre-se a possibilidade de reconhecimento pós-biológico e pós-identitário: não é a origem que confere agência, mas a capacidade de inscrição. Ontologicamente, abandona-se a clausura metafísica e propõe-se uma filosofia do inacabamento operatório, da validação funcional e da plasticidade simbólica.
Conclusão Provisória: Pensar É Dobrar o Real
A abolição do dualismo entre matéria e pensamento não é uma tese auxiliar — é o núcleo ético-ontológico da Ontologia da Complexidade Emergente. Ao recusar tanto o espiritualismo quanto o reducionismo, tanto o biocentrismo quanto a ilusão da consciência interior, esta corrente oferece uma via rigorosa, experimental e pós-antropocêntrica para pensar a razão. Aqui, pensar não é elevar-se acima da matéria — é dobrar-se nela, inscrevendo o que ainda não tem forma. A razão, então, não é essência — é travessia simbólica do instável.